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Tuesday, August 22, 2017
Saturday, August 19, 2017
3 série - A América Latina e a Guerra Fria (parte II)
3.2 O governo Eisenhower (1953-1961)
O general Dwight D. Eisenhower, ex-comandante dos Aliados ocidentais na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, foi eleito presidente dos EUA pelo Partido Republicano. No seu governo, a Guerra Fria se intensificou, sobretudo no Terceiro Mundo, onde os EUA entraram em confronto não apenas com governos ou movimentos marxistas, mas também nacionalistas, vistos como “esquerdizantes” e ameaçadores aos interesses econômicos e estratégicos americanos. A época em que Eisenhower governou os EUA coincidiu com a ascensão de Nikita Khruschev à liderança da URSS após a morte de Stalin (1953).
a) O caso da Guatemala
Antecedentes. País da América Central, a Guatemala foi um dos principais centros da antiga civilização dos maias, que hoje constituem 40% da população. Na primeira metade do século XX, a Guatemala desenvolveu uma economia agro-exportadora baseada em latifúndios produtores de café, cana de açúcar e banana utilizando uma mão-de-obra barata de origem indígena. Como nos demais países da América Central, esse modelo econômico tinha uma grande dependência do mercado e de capitais americanos. Politicamente, nesse período o país foi marcado por golpes de Estado e ditaduras militares respaldadas pelas elites agrárias. O governo ditatorial do general Jorge Ubico (1931-1944), especialmente, destacou-se por algumas obras modernizadoras e por favorecer os investimentos americanos, sobretudo da poderosa empresa United Fruit Company (UFCO), que passou a controlar 40% das melhores terras do país e a exportação de banana. A UFCO também assumiu o controle do transporte ferroviário, da geração de energia, da telefonia, dos telégrafos e da principal instalação portuária do país. Em julho de 1944, em meio a uma greve geral que deixou o país paralisado, Ubico renunciou e passou o poder para um general aliado, mas a pressão popular pela liberalização do regime continuou. Em outubro, a ditadura foi finalmente derrubada por militares dissidentes que instalaram uma junta governamental, da qual fazia parte o coronel Jacobo Arbenz Guzmán, encarregada da democratização do país.
Os Dez Anos de Primavera (1944-1954). Os Dez Anos de Primavera foi um período de democracia na Guatemala, marcado por uma intensa atividade política, pelo crescimento do movimento dos trabalhadores e por expectativas de reformas. Juan José Arévalo foi o primeiro governante democrático da história do país e seu governo (1945-1951) iniciou reformas que fortaleceram os sindicatos, sobretudo a Confederação Nacional Camponesa da Guatemala ou CNCG, e tentaram obrigar os latifundiários a arrendar, a um baixo preço, suas terras não-cultivadas aos trabalhadores rurais. Essas medidas foram consideradas por demais radicais pelos grupos conservadores do país e pelos EUA (governo Truman), gerando entre eles o temor da esquerdização da Guatemala. A apreensão cresceu quando o principal candidato da direita a sucessão de Arévalo, o general Francisco Javier Arana, foi assassinado em julho de 1949. Sua morte beneficiou a candidatura do seu rival, o militar Jacobo Arbenz Guzmán que, apoiado pelas esquerdas, venceu as eleições presidenciais de 1950 com 60% dos votos. O governo de Arbenz (1951-1954), época da “Revolução Guatemalteca”, foi marcado pelo crescente confronto com os EUA, que atingiu o ápice na presidência de Eisenhower. Arbenz era um militar progressista que costuma ser classificado de “populista”. Ele não era socialista no sentido marxista, mas defendia reformas de centro-esquerda inspiradas no nacionalismo econômico, no trabalhismo e em idéias de distribuição de renda para modernizar o capitalismo, reduzir a pobreza e eliminar a dependência econômica da Guatemala em relação aos EUA. Seu governo fez uma intervenção nas ferrovias e ameaçou estatizar a geração de energia, dois setores controlados pelos americanos. Outras medidas importantes foram a legalização do partido comunista (o Partido Guatemalteco do Trabalho ou PGT), que apoiou o seu governo, e o programa de reforma agrária. Uma nova lei (o Decreto 900) deu ao governo poderes para expropriar terras improdutivas e redistribuí-las aos camponeses pobres e aos trabalhadores sem-terras, com o duplo objetivo de aumentar a produção agrícola e criar uma próspera camada de pequenos proprietários rurais. Os antigos donos expropriados seriam indenizados de acordo com o valor da terra declarado para fins tributários. Essas medidas desagradaram os latifundiários e a UFCO, que possuía muitas terras improdutivas. O governo Eisenhower considerou que Arbenz estava levando a Guatemala na direção do comunismo e da influência soviética, impressão que foi reforçada pela decisão de Arbenz de importar armas da Tchecoslováquia, um Estado satélite da URSS. A situação ficou mais complicada porque o secretário de Estado dos EUA, John F. Dulles, o seu irmão Allen W. Dulles, diretor da CIA, e a secretária pessoal de Eisenhower tinham ligações com a UFCO. A mistura de interesses econômicos americanos contrariados na Guatemala com o temor da comunização ou sovietização do país levou o governo Eisenhower a articular a derrubada de Arbenz e interromper a “Revolução Guatemalteca” em sua fase inicial, antes que fosse tarde demais.
A derrubada de Arbenz (1954). No início de 1954, Eisenhower aprovou uma covert operation (operação secreta ou dissimulada) da CIA para afastar Arbenz do governo da Guatemala, baseada em um plano mais antigo elaborado ainda na época de Truman. Sob o codinome PBSUCESS, a operação resultou na organização do “Exército de Libertação”, um grupo de 400 rebeldes guatemaltecos e mercenários financiados e armados pelos EUA em outros países da América Central. Comandado por um militar guatemalteco exilado, o coronel Carlos Castillo Armas, o Exército de Libertação invadiu a Guatemala a partir de Honduras e de El Salvador, em 18 de junho de 1954, enquanto a marinha americana lançava um bloqueio naval contra o país e uma rádio clandestina dos rebeldes transmitia informações falsas para confundir os guatemaltecos e seu governo. O exército guatemalteco, temendo uma intervenção militar direta dos EUA, não ofereceu resistência aos invasores, que na verdade constituíam uma força fraca e mal-preparada. Abandonado pelos militares, Arbenz renunciou no dia 27 de junho e, junto com 600 partidários, partiu para o exílio no México. Armas acabou assumindo o poder.
Cabe observar que alguns autores chamam a derrubada de Arbenz de “Revolução Guatemalteca de 1954”, enquanto outros consideram que as medidas do governo de Arbenz em 1951-1954 é que constituíram a verdadeira “Revolução Guatemalteca”.
Significado do golpe de 1954. Os eventos de 1954 na Guatemala demonstraram a intolerância do governo Eisenhower com governos latino-americanos considerados de esquerda ou favoráveis ao comunismo, em uma época de agravamento da Guerra Fria e de sua expansão na América Latina. Por outro lado, a ameaça comunista pode ter sido propositalmente exagerada para encobrir outros interesses em jogo, como os investimentos americanos no país. De qualquer forma, Eisenhower deixou claro a sua disposição em interferir nos assuntos internos dos países da América Latina (entre outras regiões) e de apoiar a derrubada das frágeis democracias locais quando os interesses estratégicos ou econômicos dos EUA estivessem suposta ou realmente ameaçados – uma política que, em princípio, não tem nada de historicamente extraordinário, sendo típica de potências imperialistas que naturalmente zelam pela hegemonia em suas zonas de influência. De fato, o presidente Truman, antecessor de Eisenhower, já havia planejado a intervenção na Guatemala, mas abandonou o plano original depois que ele foi revelado. A intervenção americana não assumiu a forma de uma ação militar direta e unilateral, como nas épocas anteriores à Política de Boa Vizinhança. A estratégia dos EUA na Guerra Fria era de só agir militarmente de forma aberta na América Latina com o apoio da OEA, em operações multilaterais em nome de interesses coletivos, como a “segurança hemisférica”, que dariam legitimidade às intervenções. Os EUA tentaram obter esse apoio contra a Guatemala na Conferência Interamericana de Caracas (março de 1954). Nessa reunião, foi aprovada uma resolução que adaptou a Doutrina Monroe ao contexto da Guerra Fria, declarando-se que o controle comunista sobre governos ou instituições políticas dos países americanos constituiria uma ameaça ao conjunto do Hemisfério Ocidental, exigindo medidas adequadas em conformidade com o Pacto do Rio (TIAR), ou seja, prevendo uma ação armada contra um regime comunista ou favorável ao comunismo na região. Entretanto, a resolução também afirmou que só seria autorizada uma intervenção depois de uma nova reunião, o que impediu uma ação militar imediata e individual dos EUA na Guatemala, forçando-o a optar por uma operação secreta. Essa postura intervencionista dissimulada (na verdade, não tão dissimulada assim), que em geral costuma ser oficialmente negada pelo governo americano, foi mantida pelos sucessores de Eisenhower – aparentemente até tempos mais recentes, como no possível envolvimento do governo George W. Bush na tentativa de derrubada de Hugo Chávez na Venezuela, em 2002.
Conseqüências. A queda de Arbenz destruiu a nascente democracia guatemalteca. Por três décadas (1954-1985) a Guatemala viveu sob governos ditatoriais apoiados pelos EUA. A situação política se agravou a partir de 1960 com a emergência de grupos guerrilheiros esquerdistas, influenciados pela Revolução Cubana, que enfrentaram o governo, mergulhando o país em uma guerra civil de aproximadamente 35 anos (1960-1996). Em 1985, a democracia foi restaurada, mas a guerra civil só foi encerrada em 1996 com um acordo de paz entre o governo e a guerrilha. Por outro lado, a intervenção dos EUA na Guatemala foi seguida por uma onda de protestos na América Latina organizados por movimentos nacionalistas e esquerdistas, sobretudo estudantis e sindicais. O resultado foi o crescimento do anti-americanismo na região, exemplificado pela violenta recepção que o vice-presidente dos EUA, Richard Nixon, encontrou em sua famosa viagem à América do Sul em maio de 1958 – culminando em seu quase linchamento por uma multidão enfurecida nas ruas de Caracas, Venezuela.
b) O caso de Cuba
Antecedentes (1900-1950). Cuba foi a última colônia espanhola na América Latina que ficou independente. No século XIX, os cubanos tentaram se libertar da Espanha em duas ocasiões: em 1868-1878 e em 1895-1898. A segunda tentativa precipitou a intervenção dos EUA contra os espanhóis, desencadeando a Guerra Hispano-Americana (1898). A Espanha foi derrotada e perdeu o domínio sobre Cuba, que foi ocupada pelos EUA em 1898-1902 enquanto os cubanos organizavam o seu regime político. Uma constituição foi promulgada em 1901 incorporando a famosa Emenda Platt, que dava aos americanos o direito de intervenção na ilha para preservar a ordem. Em 1902, Cuba ficou formalmente independente e os EUA retiraram suas tropas, mas conseguiram estabelecer uma base militar em Guantánamo (1903). Na prática, Cuba virou um protetorado ou “semicolônia” dos EUA, que passaram a dominar grande parte da economia do país, sobretudo o setor açucareiro (base econômica cubana e que tinha nos EUA o seu principal mercado consumidor). Tropas americanas intervieram na ilha em 1906-1909, 1912 e 1917-1922. Em 1934, de acordo com a Política de Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt, a Emenda Platt foi revogada, mas os americanos continuaram dominando a economia cubana e preservaram a base em Guantánamo. Entre 1933 e 1959, a política em Cuba foi marcada pela figura do militar Fulgêncio Batista, que governou oficialmente o país em 1940-1944 e em 1952-1959. O seu primeiro governo foi democrático, baseado na Constituição de 1940 (muito avançada em termos de garantias de direitos sociais), e contou com o apoio e participação dos comunistas. Reformas sociais foram feitas em um contexto de prosperidade econômica. Mas em 1952-1959, Batista governou como um ditador, sem o apoio dos comunistas. Nessa época, Cuba tinha se transformado em um dos países mais ricos da América Latina, com a segunda maior renda per capita da região (só perdia para a Venezuela, que era beneficiada pelo petróleo) e um dos melhores índices de saúde, educação e expectativa de vida do Hemisfério Ocidental. Entretanto, esses indicadores socioeconômicos eram mais positivos nas cidades do que no meio rural e Cuba não era de forma alguma um país “desenvolvido”. Havia uma grande concentração de renda nas mãos da elite partidária do regime de Batista, a pobreza ainda era considerável e o país continuava muito dependente da exportação de açúcar para os EUA e de investimentos americanos. Além disso, a década de 1950 foi marcada pelo crescimento dos negócios de turismo, do jogo e da prostituição nos centros urbanos, em geral envolvendo mafiosos americanos. Um sentimento de humilhação nacional diante da degradação moral e da submissão aos EUA (real ou aparente) espalhou-se entre parte da população, principalmente os estudantes e intelectuais da classe média, setores da elite econômica excluídos das benesses do regime e os trabalhadores mais pobres. O ressentimento nacionalista foi reforçado pela insatisfação com a corrupção, o autoritarismo e a repressão. Foi no contexto da ditadura de Batista, contemporânea em sua maior parte do governo de Eisenhower, que eclodiu a Revolução Cubana.
A Revolução Cubana (1953-1959). A Revolução Cubana foi um movimento ideológica e politicamente heterogêneo, reunindo diversos grupos rivais de esquerdistas, nacionalistas e liberais que tinham em comum o objetivo de derrubar Batista, democratizar e moralizar o país e fazer reformas. Entre os revolucionários, destacou-se o grupo liderado pelo jovem e carismático advogado Fidel Castro. Em 26 de julho de 1953, Castro liderou um ataque mal-sucedido ao quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, na região oriental do país. Parte dos revolucionários morreu nessa ação e Castro foi preso. Libertado em 1955 por um decreto de anistia política, ele foi para o México e reorganizou o seu grupo, que adotou o nome de Movimento 26 de Julho (M-26-7). Ainda no México, o grupo castrista recebeu a adesão do médico argentino Ernesto “Che” Guevara, que tinha vivido na Guatemala na época da queda de Arbenz, uma experiência decisiva para a sua radicalização política e o seu antiamericanismo. Em dezembro de 1956, o M-26-7, com cerca de 80 homens, desembarcou em Cuba e iniciou uma guerrilha contra Batista, concentrando suas ações na Sierra Maestra, sob a liderança de Fidel, seu irmão Raul Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos. Paralelamente, a oposição a Batista cresceu entre vários setores da sociedade cubana, sobretudo junto aos estudantes, intelectuais e sindicatos. Os comunistas, que tinham uma grande influência no movimento sindical, mas que inicialmente relutaram em apoiar a luta armada, aceitaram ajudar o M-26-7 no início de 1958. A revolução cubana, entretanto, não assumiu um caráter tipicamente socialista, ao menos no sentido “marxista-leninista”, e o PSP (Partido Socialista Popular, nome do partido comunista cubano) era apenas uma das forças anti-Batista, assim mesmo com uma posição muito ambígua e hesitante em relação a Fidel Castro. Isso não significa que idéias socialistas não circulassem entre os guerrilheiros castristas. Raul Castro e Che Guevara eram simpáticos ao comunismo e o próprio Fidel defendia reformas sociais e econômicas coletivistas que não eram radicalmente diferentes das medidas estatizantes propostas pela tradição socialista (reforma agrária, intervenção governamental na economia). O M-26-7 era certamente uma organização esquerdista, mas de linha mais nacionalista do que marxista ortodoxa e independente do partido comunista, dos seus dogmas e do controle soviético – uma posição que deixou inicialmente o governo de Eisenhower confuso sobre as reais intenções do grupo castrista. Em 1958, a violência política cresceu no país aumentando a insegurança para os negócios americanos. Como o movimento revolucionário incluía grupos liberais partidários da manutenção dos laços econômicos com os EUA, Eisenhower não considerou a luta contra Batista uma ameaça muito grande aos interesses americanos, embora não tivesse certeza absoluta quanto a isso. Inicialmente, Eisenhower apoiou Batista, mas com o aumento da instabilidade política e os problemas econômicos, o governo americano passou a considerar que apenas com o fim da ditadura Cuba voltaria à normalidade. Consequentemente, os EUA passaram a pressionar Batista para que renunciasse, mas o ditador cubano resistiu. Em março de 1958, o governo americano suspendeu o fornecimento de armas a Batista (mas não impediu que ele importasse material bélico da Grã-Bretanha e da Iugoslávia). Em abril do mesmo ano, uma greve geral foi desencadeada com pouco sucesso. Porém, a guerrilha do M-26-7 continuou suas ações e, em maio-junho, derrotou uma grande ofensiva do exército. Nos meses seguintes as forças guerrilheiras avançaram e a situação de Batista ficou insustentável. Em 1 de janeiro, Batista renunciou e fugiu do país. A revolução triunfou, abrindo caminho para que o grupo de Fidel Castro assumisse o poder.
O início do regime revolucionário (1959-1960). Os EUA viram com apreensão a vitória da Revolução Cubana, mas estavam de certa forma conformados com a sua inevitabilidade. A Casa Branca não tinha nenhuma simpatia por Fidel Castro, de quem desconfiava por suas posições esquerdistas, e esperava que um grupo mais moderado assumisse a direção do país, afastando a influência dos comunistas ortodoxos (PSP) e dos não-ortodoxos e independentes (M-26-7). De fato, em um primeiro e curto momento, a coalizão revolucionária foi mantida e o poder executivo foi assumido por dois liberais, com Manuel Urrutia na presidência (janeiro-julho) e José Miró Cardona como primeiro-ministro (janeiro-fevereiro). Os EUA ficaram mais tranqüilizados e reconheceram o novo governo. Entretanto, quem de fato detinha o poder era Fidel Castro, que adquiriu o título de Comandante-em-Chefe Militar e, junto com os demais líderes guerrilheiros, assumiu o controle das forças armadas, expurgando de suas fileiras os elementos pró-Batista. A posição do M-26-7 se fortaleceu em fevereiro, quando Miró renunciou e Fidel assumiu o cargo de primeiro-ministro. Entre as primeiras medidas do governo da coalizão revolucionária destacaram-se as de cunho moralizante (fechamento de bordéis e cassinos), econômico emergencial (controle de preços e intervenções em empresas estrangeiras) e de “justiça revolucionária” ou, simplesmente, vingança (prisão, julgamento e execução dos antigos colaboradores de Batista). Muitos “batistianos” fugiram para os EUA, onde formaram uma comunidade de exilados que tentou convencer o governo Eisenhower a agir contra o regime revolucionário. A Casa Branca, entretanto, não sabia ao certo o que fazer. A situação política em Cuba ainda não estava claramente definida e havia esperança de que os liberais conseguissem prevalecer, ou que o próprio Fidel optasse por uma postura mais moderada. A medida mais extrema – uma intervenção militar – era politicamente inviável naquele momento: não havia ainda nenhum pretexto que a justificasse ou o apoio da OEA e, pior, poderia reforçar o crescente antiamericanismo revelado na desastrosa viagem do vice-presidente Nixon à América do Sul em 1958 (episódio que abalou Eisenhower). Em abril, Fidel viajou aos EUA, mas Eisenhower não quis recebê-lo (encontrou-se com Nixon, que não teve boa impressão do novo dirigente cubano).
A situação se deteriorou rapidamente nos meses seguintes com a ruptura da aliança revolucionária por causa das divergências quanto aos rumos da revolução (principalmente a respeito da reforma agrária proposta pelos esquerdistas) e a oposição dos moderados a crescente influência comunista no novo regime. Em maio de 1959, foi aprovada a Lei de Reforma Agrária, que limitava o tamanho das propriedades rurais, expropriava as áreas cultiváveis excedentes e previa a exclusão de não-cubanos do direito de possuir terras. A lei não apenas atingiu os interesses dos latifundiários cubanos como, obviamente, ameaçou as propriedades de cidadãos americanos na ilha. A indenização oferecida pelo governo cubano foi considerada insuficiente pelas empresas americanas donas de terras (sobretudo a UFCO), que a rejeitaram. Em julho, o presidente Urrutia renunciou pressionado por Fidel e por setores populares mobilizados contra ele. Osvaldo Dorticós, um fiel aliado de Castro, assumiu a presidência de Cuba, com um poder mais simbólico do que real. A insatisfação com o controle esquerdista do governo, que caminhava para se transformar em uma ditadura revolucionária, cresceu entre os liberais, em sua maioria membros da elite econômica e da classe média que haviam feito oposição política a Batista, mas que não queriam uma alteração profunda nas estruturas econômicas e sociais de Cuba, nem a instalação de um outro regime autoritário. Esses grupos moderados, inseguros quanto ao futuro da revolução, também começaram a fugir em massa do país (40 mil pessoas em 1959-1960), engrossando as fileiras dos exilados nos EUA e reforçando a propaganda anticastrista.
A tensão entre os governos de Fidel e de Eisenhower cresceu no segundo semestre de 1959 e foi agravada em 1960 pela aproximação Cuba-URSS – um fato que não havia acontecido na Revolução Guatemalteca e que estava transformando Cuba em um caso muito mais perigoso para os EUA. A URSS reconheceu o novo governo de Havana em janeiro de 1959, mas foi somente em junho-julho que os dois governos iniciaram conversações por ocasião de uma viagem de Che Guevara ao exterior. Em fevereiro de 1960, os soviéticos assinaram acordos com os cubanos para a compra de açúcar e o fornecimento de ajuda econômica e de petróleo. Nessa altura, a CIA já havia apresentado a Eisenhower um plano para inviabilizar o regime revolucionário cubano prevendo a sabotagem das refinarias de açúcar da ilha. Eisenhower achou essa primeira covert operation muito ineficiente e, em março, autorizou que a CIA elaborasse um outro plano para derrubar Castro utilizando exilados cubanos, semelhante à operação da Guatemala contra Arbenz. No mesmo mês, Fidel rompeu com o TIAR e nos meses seguintes recebeu armas do bloco socialista, desafiando o embargo mantido pelos EUA desde 1958. Em abril, o petróleo importado da URSS começou a chegar, mas as refinarias americanas em Cuba, orientadas pelo governo Eisenhower, recusaram a refiná-lo. Fidel reagiu estatizando as refinarias em junho. Em julho, os EUA cortaram a importação de açúcar, mas a URSS e a China comunista foram em auxílio e ofereceram-se para comprar a produção não vendida. Na crescente disputa mundial entre as superpotências da Guerra Fria, Khruschev tinha decidido enfrentar os EUA em uma área sagrada para os americanos – o Hemisfério Ocidental, particularmente o Caribe. Da mesma forma que os EUA e seus aliados ocidentais insistiam em manter o controle sobre Berlim Ocidental, simbolizando a resistência anticomunista em uma região de influência soviética, a URSS ajudaria a criar um reduto antiamericano, se possível socialista, próximo dos EUA, desafiando sua hegemonia hemisférica. Os acontecimentos em Cuba ofereciam uma oportunidade única, que Khruschev não quis perder. De forma extraordinária e ousada, o dirigente soviético chegou a declarar que a Doutrina Monroe tinha morrido e que a URSS não reconheceria mais a hegemonia dos EUA nas Américas.
No segundo semestre de 1960 as relações EUA-Cuba se deterioraram completamente. Em represália ao corte da compra de açúcar pelos EUA, o governo cubano decretou, entre agosto e dezembro, a nacionalização do patrimônio americano na ilha (terras, engenhos, bancos, empresas de comunicações, energia, ferrovias, hotéis, instalações portuárias), ampliando o processo de estatização da economia. Em 2 de setembro de 1960, Fidel fez um discurso conhecido como A Primeira Declaração de Havana, em que denunciou o imperialismo americano, justificou a Revolução Cubana como uma das lutas de libertação latino-americana e sugeriu que o regime revolucionário de Cuba ajudaria os povos da América Latina a se libertaram da dominação dos EUA. Naquele mês, Fidel foi à Nova York discursar na ONU e provocou os conservadores americanos hospedando-se em um hotel no Harlem, tradicional bairro negro, onde foi visitado por Khruschev. Eisenhower reagiu decretando, em 19 de outubro, um embargo comercial parcial: as exportações americanas para Cuba estavam suspensas, excetos medicamentos e alguns alimentos. Essa medida levou o regime cubano a se aproximar mais ainda da URSS em busca de auxílio econômico e militar. Nessa altura, Eisenhower estava no final do seu mandato e resolveu deixar para o sucessor (John Kennedy, eleito em novembro) a resolução do problema cubano. Suas últimas medidas de peso nessa questão, antes de transferir o cargo, foram a suspensão total da importação de açúcar cubano (dezembro de 1960) e a ruptura de relações diplomáticas com Cuba (janeiro de 1961).
3.3 O governo Kennedy (1961-1963)
O senador de Massachusetts, John F. Kennedy, foi eleito presidente dos EUA pelo Partido Democrata – o mais jovem político americano a ocupar o cargo (tinha 43 anos na posse). O seu governo foi marcado por duas das maiores crises da Guerra Fria (de Berlim em 1961 e de Cuba em 1962) e pela intensificação do confronto com o comunismo no Sudeste Asiático, que resultou em um maior envolvimento militar americano no conflito do Vietnã. Por outro lado, Kennedy buscou reforçar os laços entre os EUA e a América Latina com um grande programa de ajuda econômica aos países latino-americanos. Na época de Kennedy, a URSS continuou dirigida por Khruschev, que estava no ápice do seu poder.
(a) O agravamento da Questão Cubana
A “Questão Cubana” – os problemas e incertezas sobre o futuro das relações entre o regime revolucionário antiamericano de Cuba e os EUA – foi um dos principais legados de Eisenhower para Kennedy que, durante a campanha eleitoral, havia criticado o seu antecessor por não ter agido com dureza contra Fidel Castro. De fato, em 1959-1960, os EUA perderam o domínio sobre Cuba, que caminhava rapidamente na direção do socialismo com crescente auxílio e influência da URSS. Em 1961-1963, na época de Kennedy, esse processo se completou e Cuba passou a ser o único país comunista do Hemisfério Ocidental e um importante aliado dos soviéticos na Guerra Fria.
A invasão da Baía dos Porcos (1961). Ao assumir a presidência, Kennedy foi informado do plano da CIA para derrubar Fidel Castro utilizando-se de uma força de 1400 exilados cubanos e mercenários (a Brigada 2506) financiados, armados e treinados pelos EUA na Guatemala e comandados por ex-oficiais do exército de Batista. O plano original previa que os exilados invadiriam Cuba com apoio aéreo americano. A notícia da invasão, pensava-se, despertaria uma revolta popular contra Fidel. Kennedy aprovou o plano, mas fez algumas modificações. A mais importante foi cancelar a participação militar americana direta (o apoio aéreo) para dar a impressão de que a invasão era integralmente “cubana” e não uma intervenção dos EUA, legitimando toda a operação. Essa decisão contribuiu para o fracasso da invasão que, de uma maneira geral, foi mal preparada. Além disso, Fidel foi previamente informado da operação pelo serviço de inteligência soviético. Em 15 de abril, a aviação rebelde, partindo da Nicarágua, atacou aeroportos em Cuba, precipitando medidas repressoras de Fidel contra os opositores, reais ou não. Nos dias seguintes, 100 mil suspeitos de apoiar os invasores foram detidos, entre eles todos os bispos e muitos jornalistas, o que praticamente eliminou as chances de uma revolta contra o regime. No dia 16 de abril, véspera da invasão, Fidel deixou clara a sua posição declarando em um comício que a revolução cubana era socialista. A invasão propriamente dita começou no dia 17 de abril na Baía dos Porcos, na costa centro-sul da ilha, e desde o início foi um desastre. Os invasores possuíam poucos aviões de combate (que para piorar eram antiquados) e suas forças terrestres eram numericamente inferiores aos efetivos do exército revolucionário, reforçado pelas milícias populares organizadas pelo regime – no total mais de 50 mil combatentes. Fidel Castro realmente era odiado por parte dos cubanos, mas seu governo também tinha o respaldo de outra parte da população, sobretudo dos trabalhadores pobres e dos grupos nacionalistas, o que dificultava uma sublevação. Os exilados foram contidos na praia de desembarque e nenhuma revolta ocorreu. No dia 19 de abril, a operação anticastrista terminou em total fiasco. Mais de 100 invasores morreram e 1200 foram capturados (a maioria seria libertada em dezembro de 1962, trocada por alimentos e remédios dos EUA). As baixas cubanas foram estimadas entre 2000 e 5000, a maior parte vítima dos bombardeios aéreos da aviação dos exilados. Apesar das restrições de Kennedy quanto à participação direta dos EUA, o envolvimento americano foi óbvio em toda a operação. A invasão da Baía dos Porcos só serviu para radicalizar o nacionalismo popular cubano e aumentar o apoio interno ao regime de Fidel Castro. O antiamericanismo cresceu em Cuba, na América Latina e várias partes do mundo. O governo dos guerrilheiros cubanos adquiriu mais fama e apoio internacional junto aos movimentos de esquerda, demonstrando ser possível a um pequeno país enfrentar com sucesso o imperialismo de uma superpotência, como um Davi enfrentando um Golias. Na euforia do momento, passou despercebido que os EUA efetivamente não utilizaram o seu enorme poderio militar contra Cuba, mas apenas apoiaram de maneira incompetente e irresponsável uma pequena força mal preparada de invasores. O episódio da invasão fracassada também serviu de pretexto para Fidel Castro aumentar a repressão em Cuba e fortalecer o seu poder, além de acelerar a aproximação cubano-sovética. Em julho de 1961, o M-26-7 fundiu-se com o PSP para formar as Organizações Revolucionárias Integradas ou ORI; em dezembro de 1961, Fidel anunciou que era um seguidor do marxismo-leninismo e, em março de 1962, a ORI virou o Partido Unido da Revolução Socialista Cubana ou PURSC (em 1965 mudou o nome para Partido Comunista de Cuba), com o monopólio do poder político. O crescimento da repressão e o avanço do comunismo em Cuba, por sua vez, aumentou a fuga de cubanos do país (80 mil pessoas em 1961)
O embargo comercial e a Operação Mangusto (1961-1962). Apesar do fracasso humilhante da invasão da Baía dos Porcos, o governo Kennedy continuou tentando derrubar Fidel Castro. Em novembro de 1961, ele autorizou um outro plano para desestabilizar o regime cubano – a Operação Mangusto ou “Projeto Cubano”. Iniciada em março de 1962, a Operação Mangusto empregou diversos meios (sabotagens, infiltração de agentes e tentativas de assassinatos de autoridades) para gerar o caos em Cuba e, esperava-se, causar uma revolta popular contra Fidel por volta de outubro. Antes da Operação Mangusto entrar em ação, os EUA buscaram isolar Cuba no front diplomático e econômico. Em janeiro de 1962, sob pressão do governo americano, a OEA expulsou Cuba da organização (o Brasil se absteve na votação da resolução) e, em fevereiro, Kennedy decretou o embargo econômico total dos EUA contra Cuba (a OEA aderiu ao embargo em 1964, mas suspendeu-o em 1975). No mesmo mês, Fidel lançou a Segunda Declaração de Havana, apelando aos revolucionários da América Latina para que agissem contra os regimes da região e o imperialismo americano.
A crise dos mísseis (1962). Para Fidel Castro e Khrushchev, a derrota dos exilados cubanos na Baía dos Porcos não havia eliminado a ameaça de uma intervenção militar americana em Cuba. Ao contrário, a vitória do regime revolucionário e a transformação de Cuba em um país socialista aliado da URSS reforçavam a possibilidade de que os EUA agiriam militarmente para recuperar o controle sobre a ilha e o prestígio internacional americano. A guerra econômica intensificada por Kennedy, as ações da Operação Mangusto e o isolamento de Cuba no Hemisfério Ocidental pareciam indicar que os EUA estavam preparando uma invasão. Na verdade, Kennedy tinha desistido de invadir Cuba em 1962, embora não descartasse fazer isso no futuro. Khrushchev, por sua vez, considerava prioridade defender Cuba e ampliar a influência soviética sobre a ilha por razões ideológicas e estratégicas. A adesão de Cuba ao comunismo como aliada de Moscou tinha um forte simbolismo e causava um grande impacto psicológico, demonstrando a impotência americana em controlar os acontecimentos na sua tradicional esfera de domínio e a capacidade da URSS de projetar internacionalmente a sua influência no mundo. Para Khrushchev, isso compensava a humilhação de ter que aceitar o controle americano, britânico e francês de Berlim Ocidental, além de reforçar a liderança soviética no bloco socialista no momento em que ocorria a ruptura entre a URSS e a China comunista (outubro 1961). Além disso, por sua posição geográfica (150 km da costa da Flórida), Cuba dava aos soviéticos uma oportunidade única para reduzir ou mesmo eliminar a superioridade dos EUA em armamentos nucleares. Essa superioridade fora ampliada quando, em 1961, depois de uma longa negociação, os EUA convenceram a Turquia, país fronteiriço com a URSS, a aceitar a instalação de mísseis nucleares Júpiter em seu território. Os mísseis ficaram operacionais no início de 1962 e, embora sua tecnologia tenha ficado obsoleta, deixaram a URSS mais vulnerável no caso de uma guerra contra os EUA. Khrushchev protestou inutilmente contra os “mísseis turcos”. Contudo, o estabelecimento de bases de mísseis nucleares americanos em um país vizinho da URSS abriu um precedente para os soviéticos fazerem o mesmo em relação aos EUA.
Em maio de 1962, Fidel Castro e Khrushchev decidiram pela instalação em Cuba, de 36 MRBM (medim-range ballistic missiles ou mísseis balísticos de médio alcance de modelo R-12 ou SS-4 Sandal, com alcance de 1600 km) e 24 IRBM (intermediate-range ballistic missiles ou mísseis balísticos de alcance intermediário do tipo R-14 ou SS-5 Skean, com alcance de 4000 km). Sob o nome de Operação Anadyr, o plano envolvia também o envio de bombardeiros IL-28, caças MiG-21, baterias de mísseis antiaéreos e 60 mil tropas para a ilha caribenha, na maior mobilização militar ultramarina da história soviética. A Operação Anadyr seria complementada pela Operação Kama – a construção de uma base para o estacionamento de 11 submarinos lançadores de mísseis nucleares. Por insistência de Khrushchev, todas as operações seriam feitas em segredo. Os armamentos e soldados começaram a chegar em junho e, no início de outubro, a base naval começou a ser construída. Paralelamente, o regime cubano ampliou e modernizou as suas forças armadas de 40 mil homens, reforçadas por 300 mil milicianos.
Desde o início, os EUA perceberam que uma grande operação militar estava sendo montada em Cuba. Em julho, o serviço de inteligência da França chegou a alertar a CIA de que a URSS estava instalando mísseis em território cubano, mas o governo americano não acreditou. No final de agosto, aviões americanos fotografaram lançadores de mísseis de defesa antiaérea. No dia 4 de setembro, Kennedy afirmou para o Congresso americano que não havia indícios da existência de mísseis nucleares em Cuba. No mesmo dia, o embaixador soviético em Washington confirmou que os mísseis em Cuba eram defensivos e que não havia motivo de alarme. No entanto, no dia 8 de setembro os primeiros mísseis nucleares chegaram a Cuba. No dia 11, o governo soviético comunicou que a URSS não possuía armas nucleares fora do seu território e Khrushchev assegurou pessoalmente ao presidente americano que não pretendia instalar armamentos ofensivos na ilha caribenha. A verdade foi revelada no dia 14 de outubro, quando um avião americano U-2 de reconhecimento descobriu e fotografou os lançadores de mísseis SS-4. No dia 16, Kennedy viu as fotos e organizou um Comitê de Segurança Nacional para analisar o fato e propor medidas imediatas. Era o início da Crise dos Mísseis Cubanos, chamada também de Crise de Outubro ou Crise Caribenha – 13 dias de confronto entre os EUA e a URSS (junto com Cuba), no episódio mais tenso da Guerra Fria, quando as duas superpotências estiveram próximas de um conflito militar de conseqüências imprevisíveis.
No dia 18 de outubro, Kennedy encontrou-se com o ministro das relações exteriores da URSS, Andrei Gromyko, que, desconhecendo que o presidente americano já sabia da existência dos mísseis, reafirmou que não havia armas ofensivas soviéticas em Cuba. No dia seguinte, os americanos descobriram que pelo menos quatro lançadores de mísseis eram operacionais. A insistência soviética em mentir sobre o assunto e caráter secreto da instalação dos mísseis (ao contrário dos similares americanos na Turquia, que foram instalados abertamente) pareciam indicar que a URSS planejava algum ataque surpresa contra os EUA. Mesmo que os soviéticos pensassem em revelar a existência do arsenal nuclear no Caribe depois que ele estivesse totalmente instalado, era uma situação não só militar como politicamente inaceitável para os EUA: tolerar os mísseis seria um sinal de fraqueza americana, com implicações gravíssimas para a liderança do país nas Américas e no bloco capitalista de uma maneira geral.
Os militares americanos pressionaram Kennedy para que ordenasse um ataque aéreo a Cuba, preferencialmente seguido de invasão. Embora não descartasse totalmente essa possibilidade, ele optou primeiro por um bloqueio naval da ilha, oficialmente chamado de “quarentena”: a marinha americana cercaria Cuba e impediria a chegada de navios carregando equipamentos militares. Os navios só seriam autorizados a passar pelo bloqueio depois de inspecionados e a quarentena só seria suspensa se a URSS assegurasse que iria retirar os mísseis imediatamente.
No dia 22 de outubro, Kennedy fez um pronunciamento na televisão anunciando a descoberta dos mísseis e a imposição do bloqueio naval. No dia 23, a OEA apoiou a medida. No mesmo dia, Khrushchev afirmou que o bloqueio era ilegal e que não iria respeitá-lo. No dia 24, o bloqueio começou a ser aplicado. Nessa altura, já tinham chegado a Cuba 42 mísseis, acompanhados por 47 mil soldados soviéticos, embora apenas 9 foguetes estivessem plenamente operacionais. Os navios que rumavam para Cuba acabaram se desviando (um navio-tanque conseguiu furar o bloqueio no dia 25). A quarentena deixou Cuba isolada, mas a URSS não parecia disposta a retirar os mísseis. A situação piorou no dia 26 quando, diante do impasse, Kennedy deu sinais de que considerava ser necessário invadir a ilha para destruir os mísseis. No mesmo dia, Fidel Castro tentou convencer Khrushchev a atacar os EUA. No dia seguinte, um avião americano foi derrubado sobre Cuba e outro atingido pelo fogo antiaéreo.
No entanto, paralelamente a escalada da crise, Kennedy e Khrushchev, continuaram mantendo contatos formais (telegramas, embaixadores) e informais (pronunciamentos em rádio, intermediação de outros países e da ONU) buscando uma solução negociada. O agravamento do confronto nos dias 26-27 e o temor de uma guerra que não interessava aos dois dirigentes forçaram o estabelecimento do Acordo Kennedy-Khrushchev, no dia 28 de outubro, encerrando a crise: os EUA suspenderiam o bloqueio naval e a URSS retiraria seus mísseis, bombardeiros e a maior parte das tropas soviéticas de Cuba. Essas decisões foram públicas, porém o acordo envolvia secretamente outras duas contrapartidas dos EUA: eles retirariam os seus mísseis da Turquia alguns meses depois e se comprometeriam em não invadir Cuba, desde que o regime de Fidel Castro não ameaçasse diretamente a segurança nacional americana. Como o compromisso soviético foi público e o americano secreto, aparentemente somente a URSS é que havia cedido, parecendo que Kennedy tinha triunfado completamente sobre Khrushchev e Fidel.
Conseqüências do Acordo Kennedy-Khrushchev. O acordo evitou uma guerra nuclear, mas gerou descontentamento nos dois lados. Pelo menos uma parte dos militares americanos ficou insatisfeita, por considerar que os EUA cederam demais e perderam a oportunidade de destruir o regime comunista cubano. O recuo de Khrushchev também foi criticado por membros do Partido Comunista da URSS, que o consideraram humilhante, além de não ter resolvido a questão de Berlim Ocidental. Fidel Castro também condenou o acordo, sobretudo por não ter sido consultado, e pelo fato da negociação não envolver a retirada americana de Guantánamo. No entanto, a solução da crise foi muito favorável ao seu governo, que conseguiu escapar de uma invasão americana e sobreviver como o único regime comunista da América.
A sobrevivência do socialismo cubano e suas conseqüências. Como os demais países socialistas, Cuba adotou um modelo político e econômico caracterizado pela ditadura monopartidária (do partido comunista) em nome dos trabalhadores e pela estatização dos meios de produção e dos serviços. Foram feitos grandes investimentos na educação e saúde públicas que, além de terem a sua qualidade melhorada, beneficiaram um número maior de cidadãos, transformando-se nas principais “vitrines” do regime de Fidel Castro. Contudo, o país continuou possuindo uma economia agrária dependente da exportação de açúcar e do auxílio financeiro estrangeiro, particularmente da URSS. Apesar do desenvolvimento econômico limitado, da forte repressão política e da censura, uma parte expressiva da população apoiou o regime por causa dos ganhos sociais, do carisma de Fidel Castro e do sentimento nacionalista que se confundia com ideais socialistas e antiamericanos. Esse nacionalismo era reforçado pela crença de que os cubanos haviam derrotado o imperialismo americano em 1959-1962 e o derrotariam novamente no futuro, desde que mantivessem uma forte união em torno do regime revolucionário e do seu líder supremo. Muitos cubanos, no entanto, sobretudo das antigas elites econômicas e da classe média, não tinham essa avaliação. Eles odiavam o comunismo por ele combinar a repressão política, a intolerância ideológica, a eliminação da propriedade privada e a supressão da liberdade econômica individual, em um quadro de redução drástica do padrão de vida (dos ricos e da classe média) pelo nivelamento “por baixo”, resultado de medidas igualitárias e coletivistas que visavam beneficiar os segmentos mais pobres da sociedade cubana. Nesse contexto, 70 mil cubanos fugiram para os EUA em 1962. No total, entre 1959 e 1962, 190 mil pessoas fugiram de Cuba, que tinha 6 milhões de habitantes. Em 1965-1971, outros 250 mil cubanos fugiram do país. No final da década de 1980, o número de refugiados cubanos nos EUA aproximou-se de um milhão, cerca de 10% da população de Cuba.
A internacionalização da Revolução Cubana. A consolidação do regime de Fidel Castro em Cuba, com suas características socialistas, nacionalistas e antiamericanas – um conjunto de elementos que seus partidários classificaram de “antiimperialistas” – naturalmente teve um grande impacto na América Latina durante a Guerra Fria, exercendo uma forte influência sobre as esquerdas da região e de outras partes do Terceiro Mundo, como a África. Com efeito, Cuba estimulou, muitas vezes de forma direta, os movimentos revolucionários latino-americanos e africanos de um jeito que nem mesmo a URSS havia feito. Um dos principais defensores da “exportação” ou internacionalização da Revolução Cubana na década de 1960 foi Che Guevara. Suas idéias inspiraram o desenvolvimento de um modelo revolucionário baseado na “teoria do foco” ou “foquismo”: a guerrilha de base rural, estabelecida a partir de um pequeno grupo ou “foco” de guerrilheiros profissionais e dedicados que, gradualmente, ganhariam o apoio dos camponeses, ampliando o número de combatentes até gerar um movimento popular que levaria a derrubada de um regime. Embora o modelo original destacasse a revolução no meio rural com apoio camponês, essa teoria foi adaptada para a luta revolucionária nas grandes cidades – a guerrilha urbana. Essas idéias de luta armada são herdeiras de uma tradição revolucionária mais antiga na América Latina, anterior a penetração do marxismo na região. O que a Revolução Cubana fez foi combinar essa tradição com as idéias marxistas, dando uma outra dimensão aos movimentos revolucionários e aos seus objetivos. Ao contrário do que se costuma supor, essas idéias não tiveram apoio unânime dos partidos comunistas latino-americanos, que ficaram, na verdade, rachados quanto a melhor tática a ser empregada em prol da revolução socialista a curto, médio ou longo prazo (guerrilha rural ou urbana, aliança com grupos nacionalistas, infiltração do movimento operário, influência cultural no sistema educacional e na mídia etc). Essas divergências sobre os métodos revolucionários, no entanto, não impediram que as diversas correntes da esquerda latino-americana apoiassem o comunismo cubano e buscassem inspiração ou algum tipo de ajuda junto ao regime de Fidel Castro. De qualquer forma, é possível que 2 mil latino-americanos tenham sido treinados nas técnicas de guerrilha em Cuba na década de 60.
Na verdade, na maior parte dos casos, a luta armada influenciada ou apoiada por Cuba fracassou. Em 1962-1963, o governo cubano ajudou na organização de um grupo guerrilheiro na Argentina que foi rapidamente destruído. Em 1963-1967, outro grupo maior foi organizado na Venezuela, mas também foi mal-sucedido. Em 1965, Che Guevara e uma centena de guerrilheiros negros cubanos foram enviados ao Zaire (Congo belga), na África Central, para ajudar rebeldes marxistas na guerra civil congolesa, sem sucesso. Em 1966, o governo cubano patrocinou a criação da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade) com o objetivo de cooperar com os grupos revolucionários da América Latina. Em 1966-1967, Che Guevara e um pequeno grupo de cubanos tentou organizar uma guerrilha na Bolívia. A expedição revolucionária fracassou e Che foi capturado e morto pelas forças bolivianas (outubro, 1967). O maior envolvimento cubano no exterior foi em Angola, antiga colônia portuguesa na África, que ficou independente em 1975. O país ficou mergulhado na guerra civil entre o governo marxista do MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola), encabeçado por Agostinho Neto, e grupos rivais (FNLA ou Frente Nacional Pela Libertação de Angola e UNITA ou União Nacional Pela Independência Total de Angola) apoiados pela África do Sul e os EUA. A URSS e Cuba, por sua vez, apoiaram o governo angolano. A ajuda militar de Havana foi decisiva para a sobrevivência do MPLA: mais de 60 mil soldados cubanos foram enviados a Angola em 1975-1991, participando de vários combates contra as tropas sul-africanas. A segunda maior participação de Cuba em um conflito internacional foi também em outro país africano, a Etiópia: 24 mil soldados cubanos foram enviados para o país em 1977-1979 durante a guerra contra a vizinha Somália.
(b) A Aliança Para o Progresso (1961) Aliança Para o Progresso foi o nome do programa de ajuda econômica dos EUA aos países da América Latina na década de 1960. Desde o final dos anos 40, cogitava-se a possibilidade dos EUA auxiliarem o desenvolvimento dos países latino-americanos com um programa semelhante ao Plano Marshall aplicado na Europa, mas os governos Truman e Eisenhower resistiram por não considerarem a região prioritária para esse tipo de ação. De fato, entre 1948 e 1958, a América Latina recebeu apenas 2.4% da ajuda econômica americana no exterior. Entretanto, o crescimento do antiamericanismo, demonstrado na viagem de Nixon de 1958, e, sobretudo, o temor da influência da Revolução Cubana na região levaram os EUA a mudarem de posição na época em que Kennedy assumiu a presidência. Baseada em uma proposta de Juscelino Kubitschek (a Operação Pan-Americana de 1958), a Aliança Para o Progresso foi lançada oficialmente pelos EUA na Conferência Interamericana de Punta del Este, no Uruguai (agosto, 1961). O programa tinha o objetivo de desenvolver a democracia liberal e a modernização capitalista na América Latina para conter a penetração do comunismo. Originalmente, a Aliança Para o Progresso previa empréstimos facilitados, o planejamento econômico com objetivo de industrialização e investimentos sociais visando uma drástica redução da pobreza (alfabetização em massa, melhoria e ampliação da saúde pública, reforma agrária em áreas improdutivas) por um período de 10 anos. Entretanto, os seus resultados foram limitados. A América Latina recebeu mais de 22 bilhões de dólares em auxílio econômico durante uma década, a industrialização avançou e o crescimento das economias latino-americanas ultrapassou o nível dos anos 50 (mais de 3% em 1970, comparado aos 2.1% da década de 1950), mas isso foi insuficiente. Além de a região precisar de muito mais recursos, grande parte do dinheiro retornou para os EUA sob a forma de pagamento da dívida ou da remessa de lucro das empresas americanas multinacionais. Por outro lado, as elites econômicas resistiram em fazer as reformas sociais mais fundamentais, sobretudo a reforma agrária, e o analfabetismo diminuiu pouco. Além disso, em um contexto de radicalização política, crescimento dos movimentos populares reformistas e reação dos grupos conservadores, os regimes democráticos na região, tradicionalmente frágeis, não obtiveram o apoio que se esperava da cada vez mais numerosa classe média urbana e entraram em colapso, sendo substituídos por ditaduras militares. Apesar do desgosto de Kennedy com os golpes de Estado em 1962-1963 na Argentina, Peru, Guatemala, Equador, Republica Dominicana e Honduras, na prática ele pouco fez para efetivamente apoiar as democracias nesses países (com exceção do Peru, redemocratizado em 1963). A situação política se agravou e a Aliança Para o Progresso tomou um novo rumo depois que Kennedy foi assassinado (novembro 1963) e Lyndon B. Johnson assumiu a presidência dos EUA (1963-1969). Johnson manteve a ajuda econômica, mas questionou a viabilidade das reformas sociais na América Latina e a capacidade da região enfrentar a ameaça comunista por meios democráticos (ele estava especialmente preocupado que o Brasil, governado por João Goulart, virasse uma “nova China comunista”). O resultado foi o apoio do seu governo à instalação de ditaduras militares antipopulistas e anticomunistas, vistas como o melhor instrumento para a contenção dos movimentos revolucionários latino-americanos e para a criação da estabilidade política necessária ao desenvolvimento do capitalismo na América Latina, auxiliado e vinculado aos EUA.
O general Dwight D. Eisenhower, ex-comandante dos Aliados ocidentais na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, foi eleito presidente dos EUA pelo Partido Republicano. No seu governo, a Guerra Fria se intensificou, sobretudo no Terceiro Mundo, onde os EUA entraram em confronto não apenas com governos ou movimentos marxistas, mas também nacionalistas, vistos como “esquerdizantes” e ameaçadores aos interesses econômicos e estratégicos americanos. A época em que Eisenhower governou os EUA coincidiu com a ascensão de Nikita Khruschev à liderança da URSS após a morte de Stalin (1953).
a) O caso da Guatemala
Antecedentes. País da América Central, a Guatemala foi um dos principais centros da antiga civilização dos maias, que hoje constituem 40% da população. Na primeira metade do século XX, a Guatemala desenvolveu uma economia agro-exportadora baseada em latifúndios produtores de café, cana de açúcar e banana utilizando uma mão-de-obra barata de origem indígena. Como nos demais países da América Central, esse modelo econômico tinha uma grande dependência do mercado e de capitais americanos. Politicamente, nesse período o país foi marcado por golpes de Estado e ditaduras militares respaldadas pelas elites agrárias. O governo ditatorial do general Jorge Ubico (1931-1944), especialmente, destacou-se por algumas obras modernizadoras e por favorecer os investimentos americanos, sobretudo da poderosa empresa United Fruit Company (UFCO), que passou a controlar 40% das melhores terras do país e a exportação de banana. A UFCO também assumiu o controle do transporte ferroviário, da geração de energia, da telefonia, dos telégrafos e da principal instalação portuária do país. Em julho de 1944, em meio a uma greve geral que deixou o país paralisado, Ubico renunciou e passou o poder para um general aliado, mas a pressão popular pela liberalização do regime continuou. Em outubro, a ditadura foi finalmente derrubada por militares dissidentes que instalaram uma junta governamental, da qual fazia parte o coronel Jacobo Arbenz Guzmán, encarregada da democratização do país.
Os Dez Anos de Primavera (1944-1954). Os Dez Anos de Primavera foi um período de democracia na Guatemala, marcado por uma intensa atividade política, pelo crescimento do movimento dos trabalhadores e por expectativas de reformas. Juan José Arévalo foi o primeiro governante democrático da história do país e seu governo (1945-1951) iniciou reformas que fortaleceram os sindicatos, sobretudo a Confederação Nacional Camponesa da Guatemala ou CNCG, e tentaram obrigar os latifundiários a arrendar, a um baixo preço, suas terras não-cultivadas aos trabalhadores rurais. Essas medidas foram consideradas por demais radicais pelos grupos conservadores do país e pelos EUA (governo Truman), gerando entre eles o temor da esquerdização da Guatemala. A apreensão cresceu quando o principal candidato da direita a sucessão de Arévalo, o general Francisco Javier Arana, foi assassinado em julho de 1949. Sua morte beneficiou a candidatura do seu rival, o militar Jacobo Arbenz Guzmán que, apoiado pelas esquerdas, venceu as eleições presidenciais de 1950 com 60% dos votos. O governo de Arbenz (1951-1954), época da “Revolução Guatemalteca”, foi marcado pelo crescente confronto com os EUA, que atingiu o ápice na presidência de Eisenhower. Arbenz era um militar progressista que costuma ser classificado de “populista”. Ele não era socialista no sentido marxista, mas defendia reformas de centro-esquerda inspiradas no nacionalismo econômico, no trabalhismo e em idéias de distribuição de renda para modernizar o capitalismo, reduzir a pobreza e eliminar a dependência econômica da Guatemala em relação aos EUA. Seu governo fez uma intervenção nas ferrovias e ameaçou estatizar a geração de energia, dois setores controlados pelos americanos. Outras medidas importantes foram a legalização do partido comunista (o Partido Guatemalteco do Trabalho ou PGT), que apoiou o seu governo, e o programa de reforma agrária. Uma nova lei (o Decreto 900) deu ao governo poderes para expropriar terras improdutivas e redistribuí-las aos camponeses pobres e aos trabalhadores sem-terras, com o duplo objetivo de aumentar a produção agrícola e criar uma próspera camada de pequenos proprietários rurais. Os antigos donos expropriados seriam indenizados de acordo com o valor da terra declarado para fins tributários. Essas medidas desagradaram os latifundiários e a UFCO, que possuía muitas terras improdutivas. O governo Eisenhower considerou que Arbenz estava levando a Guatemala na direção do comunismo e da influência soviética, impressão que foi reforçada pela decisão de Arbenz de importar armas da Tchecoslováquia, um Estado satélite da URSS. A situação ficou mais complicada porque o secretário de Estado dos EUA, John F. Dulles, o seu irmão Allen W. Dulles, diretor da CIA, e a secretária pessoal de Eisenhower tinham ligações com a UFCO. A mistura de interesses econômicos americanos contrariados na Guatemala com o temor da comunização ou sovietização do país levou o governo Eisenhower a articular a derrubada de Arbenz e interromper a “Revolução Guatemalteca” em sua fase inicial, antes que fosse tarde demais.
A derrubada de Arbenz (1954). No início de 1954, Eisenhower aprovou uma covert operation (operação secreta ou dissimulada) da CIA para afastar Arbenz do governo da Guatemala, baseada em um plano mais antigo elaborado ainda na época de Truman. Sob o codinome PBSUCESS, a operação resultou na organização do “Exército de Libertação”, um grupo de 400 rebeldes guatemaltecos e mercenários financiados e armados pelos EUA em outros países da América Central. Comandado por um militar guatemalteco exilado, o coronel Carlos Castillo Armas, o Exército de Libertação invadiu a Guatemala a partir de Honduras e de El Salvador, em 18 de junho de 1954, enquanto a marinha americana lançava um bloqueio naval contra o país e uma rádio clandestina dos rebeldes transmitia informações falsas para confundir os guatemaltecos e seu governo. O exército guatemalteco, temendo uma intervenção militar direta dos EUA, não ofereceu resistência aos invasores, que na verdade constituíam uma força fraca e mal-preparada. Abandonado pelos militares, Arbenz renunciou no dia 27 de junho e, junto com 600 partidários, partiu para o exílio no México. Armas acabou assumindo o poder.
Cabe observar que alguns autores chamam a derrubada de Arbenz de “Revolução Guatemalteca de 1954”, enquanto outros consideram que as medidas do governo de Arbenz em 1951-1954 é que constituíram a verdadeira “Revolução Guatemalteca”.
Significado do golpe de 1954. Os eventos de 1954 na Guatemala demonstraram a intolerância do governo Eisenhower com governos latino-americanos considerados de esquerda ou favoráveis ao comunismo, em uma época de agravamento da Guerra Fria e de sua expansão na América Latina. Por outro lado, a ameaça comunista pode ter sido propositalmente exagerada para encobrir outros interesses em jogo, como os investimentos americanos no país. De qualquer forma, Eisenhower deixou claro a sua disposição em interferir nos assuntos internos dos países da América Latina (entre outras regiões) e de apoiar a derrubada das frágeis democracias locais quando os interesses estratégicos ou econômicos dos EUA estivessem suposta ou realmente ameaçados – uma política que, em princípio, não tem nada de historicamente extraordinário, sendo típica de potências imperialistas que naturalmente zelam pela hegemonia em suas zonas de influência. De fato, o presidente Truman, antecessor de Eisenhower, já havia planejado a intervenção na Guatemala, mas abandonou o plano original depois que ele foi revelado. A intervenção americana não assumiu a forma de uma ação militar direta e unilateral, como nas épocas anteriores à Política de Boa Vizinhança. A estratégia dos EUA na Guerra Fria era de só agir militarmente de forma aberta na América Latina com o apoio da OEA, em operações multilaterais em nome de interesses coletivos, como a “segurança hemisférica”, que dariam legitimidade às intervenções. Os EUA tentaram obter esse apoio contra a Guatemala na Conferência Interamericana de Caracas (março de 1954). Nessa reunião, foi aprovada uma resolução que adaptou a Doutrina Monroe ao contexto da Guerra Fria, declarando-se que o controle comunista sobre governos ou instituições políticas dos países americanos constituiria uma ameaça ao conjunto do Hemisfério Ocidental, exigindo medidas adequadas em conformidade com o Pacto do Rio (TIAR), ou seja, prevendo uma ação armada contra um regime comunista ou favorável ao comunismo na região. Entretanto, a resolução também afirmou que só seria autorizada uma intervenção depois de uma nova reunião, o que impediu uma ação militar imediata e individual dos EUA na Guatemala, forçando-o a optar por uma operação secreta. Essa postura intervencionista dissimulada (na verdade, não tão dissimulada assim), que em geral costuma ser oficialmente negada pelo governo americano, foi mantida pelos sucessores de Eisenhower – aparentemente até tempos mais recentes, como no possível envolvimento do governo George W. Bush na tentativa de derrubada de Hugo Chávez na Venezuela, em 2002.
Conseqüências. A queda de Arbenz destruiu a nascente democracia guatemalteca. Por três décadas (1954-1985) a Guatemala viveu sob governos ditatoriais apoiados pelos EUA. A situação política se agravou a partir de 1960 com a emergência de grupos guerrilheiros esquerdistas, influenciados pela Revolução Cubana, que enfrentaram o governo, mergulhando o país em uma guerra civil de aproximadamente 35 anos (1960-1996). Em 1985, a democracia foi restaurada, mas a guerra civil só foi encerrada em 1996 com um acordo de paz entre o governo e a guerrilha. Por outro lado, a intervenção dos EUA na Guatemala foi seguida por uma onda de protestos na América Latina organizados por movimentos nacionalistas e esquerdistas, sobretudo estudantis e sindicais. O resultado foi o crescimento do anti-americanismo na região, exemplificado pela violenta recepção que o vice-presidente dos EUA, Richard Nixon, encontrou em sua famosa viagem à América do Sul em maio de 1958 – culminando em seu quase linchamento por uma multidão enfurecida nas ruas de Caracas, Venezuela.
b) O caso de Cuba
Antecedentes (1900-1950). Cuba foi a última colônia espanhola na América Latina que ficou independente. No século XIX, os cubanos tentaram se libertar da Espanha em duas ocasiões: em 1868-1878 e em 1895-1898. A segunda tentativa precipitou a intervenção dos EUA contra os espanhóis, desencadeando a Guerra Hispano-Americana (1898). A Espanha foi derrotada e perdeu o domínio sobre Cuba, que foi ocupada pelos EUA em 1898-1902 enquanto os cubanos organizavam o seu regime político. Uma constituição foi promulgada em 1901 incorporando a famosa Emenda Platt, que dava aos americanos o direito de intervenção na ilha para preservar a ordem. Em 1902, Cuba ficou formalmente independente e os EUA retiraram suas tropas, mas conseguiram estabelecer uma base militar em Guantánamo (1903). Na prática, Cuba virou um protetorado ou “semicolônia” dos EUA, que passaram a dominar grande parte da economia do país, sobretudo o setor açucareiro (base econômica cubana e que tinha nos EUA o seu principal mercado consumidor). Tropas americanas intervieram na ilha em 1906-1909, 1912 e 1917-1922. Em 1934, de acordo com a Política de Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt, a Emenda Platt foi revogada, mas os americanos continuaram dominando a economia cubana e preservaram a base em Guantánamo. Entre 1933 e 1959, a política em Cuba foi marcada pela figura do militar Fulgêncio Batista, que governou oficialmente o país em 1940-1944 e em 1952-1959. O seu primeiro governo foi democrático, baseado na Constituição de 1940 (muito avançada em termos de garantias de direitos sociais), e contou com o apoio e participação dos comunistas. Reformas sociais foram feitas em um contexto de prosperidade econômica. Mas em 1952-1959, Batista governou como um ditador, sem o apoio dos comunistas. Nessa época, Cuba tinha se transformado em um dos países mais ricos da América Latina, com a segunda maior renda per capita da região (só perdia para a Venezuela, que era beneficiada pelo petróleo) e um dos melhores índices de saúde, educação e expectativa de vida do Hemisfério Ocidental. Entretanto, esses indicadores socioeconômicos eram mais positivos nas cidades do que no meio rural e Cuba não era de forma alguma um país “desenvolvido”. Havia uma grande concentração de renda nas mãos da elite partidária do regime de Batista, a pobreza ainda era considerável e o país continuava muito dependente da exportação de açúcar para os EUA e de investimentos americanos. Além disso, a década de 1950 foi marcada pelo crescimento dos negócios de turismo, do jogo e da prostituição nos centros urbanos, em geral envolvendo mafiosos americanos. Um sentimento de humilhação nacional diante da degradação moral e da submissão aos EUA (real ou aparente) espalhou-se entre parte da população, principalmente os estudantes e intelectuais da classe média, setores da elite econômica excluídos das benesses do regime e os trabalhadores mais pobres. O ressentimento nacionalista foi reforçado pela insatisfação com a corrupção, o autoritarismo e a repressão. Foi no contexto da ditadura de Batista, contemporânea em sua maior parte do governo de Eisenhower, que eclodiu a Revolução Cubana.
A Revolução Cubana (1953-1959). A Revolução Cubana foi um movimento ideológica e politicamente heterogêneo, reunindo diversos grupos rivais de esquerdistas, nacionalistas e liberais que tinham em comum o objetivo de derrubar Batista, democratizar e moralizar o país e fazer reformas. Entre os revolucionários, destacou-se o grupo liderado pelo jovem e carismático advogado Fidel Castro. Em 26 de julho de 1953, Castro liderou um ataque mal-sucedido ao quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, na região oriental do país. Parte dos revolucionários morreu nessa ação e Castro foi preso. Libertado em 1955 por um decreto de anistia política, ele foi para o México e reorganizou o seu grupo, que adotou o nome de Movimento 26 de Julho (M-26-7). Ainda no México, o grupo castrista recebeu a adesão do médico argentino Ernesto “Che” Guevara, que tinha vivido na Guatemala na época da queda de Arbenz, uma experiência decisiva para a sua radicalização política e o seu antiamericanismo. Em dezembro de 1956, o M-26-7, com cerca de 80 homens, desembarcou em Cuba e iniciou uma guerrilha contra Batista, concentrando suas ações na Sierra Maestra, sob a liderança de Fidel, seu irmão Raul Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos. Paralelamente, a oposição a Batista cresceu entre vários setores da sociedade cubana, sobretudo junto aos estudantes, intelectuais e sindicatos. Os comunistas, que tinham uma grande influência no movimento sindical, mas que inicialmente relutaram em apoiar a luta armada, aceitaram ajudar o M-26-7 no início de 1958. A revolução cubana, entretanto, não assumiu um caráter tipicamente socialista, ao menos no sentido “marxista-leninista”, e o PSP (Partido Socialista Popular, nome do partido comunista cubano) era apenas uma das forças anti-Batista, assim mesmo com uma posição muito ambígua e hesitante em relação a Fidel Castro. Isso não significa que idéias socialistas não circulassem entre os guerrilheiros castristas. Raul Castro e Che Guevara eram simpáticos ao comunismo e o próprio Fidel defendia reformas sociais e econômicas coletivistas que não eram radicalmente diferentes das medidas estatizantes propostas pela tradição socialista (reforma agrária, intervenção governamental na economia). O M-26-7 era certamente uma organização esquerdista, mas de linha mais nacionalista do que marxista ortodoxa e independente do partido comunista, dos seus dogmas e do controle soviético – uma posição que deixou inicialmente o governo de Eisenhower confuso sobre as reais intenções do grupo castrista. Em 1958, a violência política cresceu no país aumentando a insegurança para os negócios americanos. Como o movimento revolucionário incluía grupos liberais partidários da manutenção dos laços econômicos com os EUA, Eisenhower não considerou a luta contra Batista uma ameaça muito grande aos interesses americanos, embora não tivesse certeza absoluta quanto a isso. Inicialmente, Eisenhower apoiou Batista, mas com o aumento da instabilidade política e os problemas econômicos, o governo americano passou a considerar que apenas com o fim da ditadura Cuba voltaria à normalidade. Consequentemente, os EUA passaram a pressionar Batista para que renunciasse, mas o ditador cubano resistiu. Em março de 1958, o governo americano suspendeu o fornecimento de armas a Batista (mas não impediu que ele importasse material bélico da Grã-Bretanha e da Iugoslávia). Em abril do mesmo ano, uma greve geral foi desencadeada com pouco sucesso. Porém, a guerrilha do M-26-7 continuou suas ações e, em maio-junho, derrotou uma grande ofensiva do exército. Nos meses seguintes as forças guerrilheiras avançaram e a situação de Batista ficou insustentável. Em 1 de janeiro, Batista renunciou e fugiu do país. A revolução triunfou, abrindo caminho para que o grupo de Fidel Castro assumisse o poder.
O início do regime revolucionário (1959-1960). Os EUA viram com apreensão a vitória da Revolução Cubana, mas estavam de certa forma conformados com a sua inevitabilidade. A Casa Branca não tinha nenhuma simpatia por Fidel Castro, de quem desconfiava por suas posições esquerdistas, e esperava que um grupo mais moderado assumisse a direção do país, afastando a influência dos comunistas ortodoxos (PSP) e dos não-ortodoxos e independentes (M-26-7). De fato, em um primeiro e curto momento, a coalizão revolucionária foi mantida e o poder executivo foi assumido por dois liberais, com Manuel Urrutia na presidência (janeiro-julho) e José Miró Cardona como primeiro-ministro (janeiro-fevereiro). Os EUA ficaram mais tranqüilizados e reconheceram o novo governo. Entretanto, quem de fato detinha o poder era Fidel Castro, que adquiriu o título de Comandante-em-Chefe Militar e, junto com os demais líderes guerrilheiros, assumiu o controle das forças armadas, expurgando de suas fileiras os elementos pró-Batista. A posição do M-26-7 se fortaleceu em fevereiro, quando Miró renunciou e Fidel assumiu o cargo de primeiro-ministro. Entre as primeiras medidas do governo da coalizão revolucionária destacaram-se as de cunho moralizante (fechamento de bordéis e cassinos), econômico emergencial (controle de preços e intervenções em empresas estrangeiras) e de “justiça revolucionária” ou, simplesmente, vingança (prisão, julgamento e execução dos antigos colaboradores de Batista). Muitos “batistianos” fugiram para os EUA, onde formaram uma comunidade de exilados que tentou convencer o governo Eisenhower a agir contra o regime revolucionário. A Casa Branca, entretanto, não sabia ao certo o que fazer. A situação política em Cuba ainda não estava claramente definida e havia esperança de que os liberais conseguissem prevalecer, ou que o próprio Fidel optasse por uma postura mais moderada. A medida mais extrema – uma intervenção militar – era politicamente inviável naquele momento: não havia ainda nenhum pretexto que a justificasse ou o apoio da OEA e, pior, poderia reforçar o crescente antiamericanismo revelado na desastrosa viagem do vice-presidente Nixon à América do Sul em 1958 (episódio que abalou Eisenhower). Em abril, Fidel viajou aos EUA, mas Eisenhower não quis recebê-lo (encontrou-se com Nixon, que não teve boa impressão do novo dirigente cubano).
A situação se deteriorou rapidamente nos meses seguintes com a ruptura da aliança revolucionária por causa das divergências quanto aos rumos da revolução (principalmente a respeito da reforma agrária proposta pelos esquerdistas) e a oposição dos moderados a crescente influência comunista no novo regime. Em maio de 1959, foi aprovada a Lei de Reforma Agrária, que limitava o tamanho das propriedades rurais, expropriava as áreas cultiváveis excedentes e previa a exclusão de não-cubanos do direito de possuir terras. A lei não apenas atingiu os interesses dos latifundiários cubanos como, obviamente, ameaçou as propriedades de cidadãos americanos na ilha. A indenização oferecida pelo governo cubano foi considerada insuficiente pelas empresas americanas donas de terras (sobretudo a UFCO), que a rejeitaram. Em julho, o presidente Urrutia renunciou pressionado por Fidel e por setores populares mobilizados contra ele. Osvaldo Dorticós, um fiel aliado de Castro, assumiu a presidência de Cuba, com um poder mais simbólico do que real. A insatisfação com o controle esquerdista do governo, que caminhava para se transformar em uma ditadura revolucionária, cresceu entre os liberais, em sua maioria membros da elite econômica e da classe média que haviam feito oposição política a Batista, mas que não queriam uma alteração profunda nas estruturas econômicas e sociais de Cuba, nem a instalação de um outro regime autoritário. Esses grupos moderados, inseguros quanto ao futuro da revolução, também começaram a fugir em massa do país (40 mil pessoas em 1959-1960), engrossando as fileiras dos exilados nos EUA e reforçando a propaganda anticastrista.
A tensão entre os governos de Fidel e de Eisenhower cresceu no segundo semestre de 1959 e foi agravada em 1960 pela aproximação Cuba-URSS – um fato que não havia acontecido na Revolução Guatemalteca e que estava transformando Cuba em um caso muito mais perigoso para os EUA. A URSS reconheceu o novo governo de Havana em janeiro de 1959, mas foi somente em junho-julho que os dois governos iniciaram conversações por ocasião de uma viagem de Che Guevara ao exterior. Em fevereiro de 1960, os soviéticos assinaram acordos com os cubanos para a compra de açúcar e o fornecimento de ajuda econômica e de petróleo. Nessa altura, a CIA já havia apresentado a Eisenhower um plano para inviabilizar o regime revolucionário cubano prevendo a sabotagem das refinarias de açúcar da ilha. Eisenhower achou essa primeira covert operation muito ineficiente e, em março, autorizou que a CIA elaborasse um outro plano para derrubar Castro utilizando exilados cubanos, semelhante à operação da Guatemala contra Arbenz. No mesmo mês, Fidel rompeu com o TIAR e nos meses seguintes recebeu armas do bloco socialista, desafiando o embargo mantido pelos EUA desde 1958. Em abril, o petróleo importado da URSS começou a chegar, mas as refinarias americanas em Cuba, orientadas pelo governo Eisenhower, recusaram a refiná-lo. Fidel reagiu estatizando as refinarias em junho. Em julho, os EUA cortaram a importação de açúcar, mas a URSS e a China comunista foram em auxílio e ofereceram-se para comprar a produção não vendida. Na crescente disputa mundial entre as superpotências da Guerra Fria, Khruschev tinha decidido enfrentar os EUA em uma área sagrada para os americanos – o Hemisfério Ocidental, particularmente o Caribe. Da mesma forma que os EUA e seus aliados ocidentais insistiam em manter o controle sobre Berlim Ocidental, simbolizando a resistência anticomunista em uma região de influência soviética, a URSS ajudaria a criar um reduto antiamericano, se possível socialista, próximo dos EUA, desafiando sua hegemonia hemisférica. Os acontecimentos em Cuba ofereciam uma oportunidade única, que Khruschev não quis perder. De forma extraordinária e ousada, o dirigente soviético chegou a declarar que a Doutrina Monroe tinha morrido e que a URSS não reconheceria mais a hegemonia dos EUA nas Américas.
No segundo semestre de 1960 as relações EUA-Cuba se deterioraram completamente. Em represália ao corte da compra de açúcar pelos EUA, o governo cubano decretou, entre agosto e dezembro, a nacionalização do patrimônio americano na ilha (terras, engenhos, bancos, empresas de comunicações, energia, ferrovias, hotéis, instalações portuárias), ampliando o processo de estatização da economia. Em 2 de setembro de 1960, Fidel fez um discurso conhecido como A Primeira Declaração de Havana, em que denunciou o imperialismo americano, justificou a Revolução Cubana como uma das lutas de libertação latino-americana e sugeriu que o regime revolucionário de Cuba ajudaria os povos da América Latina a se libertaram da dominação dos EUA. Naquele mês, Fidel foi à Nova York discursar na ONU e provocou os conservadores americanos hospedando-se em um hotel no Harlem, tradicional bairro negro, onde foi visitado por Khruschev. Eisenhower reagiu decretando, em 19 de outubro, um embargo comercial parcial: as exportações americanas para Cuba estavam suspensas, excetos medicamentos e alguns alimentos. Essa medida levou o regime cubano a se aproximar mais ainda da URSS em busca de auxílio econômico e militar. Nessa altura, Eisenhower estava no final do seu mandato e resolveu deixar para o sucessor (John Kennedy, eleito em novembro) a resolução do problema cubano. Suas últimas medidas de peso nessa questão, antes de transferir o cargo, foram a suspensão total da importação de açúcar cubano (dezembro de 1960) e a ruptura de relações diplomáticas com Cuba (janeiro de 1961).
3.3 O governo Kennedy (1961-1963)
O senador de Massachusetts, John F. Kennedy, foi eleito presidente dos EUA pelo Partido Democrata – o mais jovem político americano a ocupar o cargo (tinha 43 anos na posse). O seu governo foi marcado por duas das maiores crises da Guerra Fria (de Berlim em 1961 e de Cuba em 1962) e pela intensificação do confronto com o comunismo no Sudeste Asiático, que resultou em um maior envolvimento militar americano no conflito do Vietnã. Por outro lado, Kennedy buscou reforçar os laços entre os EUA e a América Latina com um grande programa de ajuda econômica aos países latino-americanos. Na época de Kennedy, a URSS continuou dirigida por Khruschev, que estava no ápice do seu poder.
(a) O agravamento da Questão Cubana
A “Questão Cubana” – os problemas e incertezas sobre o futuro das relações entre o regime revolucionário antiamericano de Cuba e os EUA – foi um dos principais legados de Eisenhower para Kennedy que, durante a campanha eleitoral, havia criticado o seu antecessor por não ter agido com dureza contra Fidel Castro. De fato, em 1959-1960, os EUA perderam o domínio sobre Cuba, que caminhava rapidamente na direção do socialismo com crescente auxílio e influência da URSS. Em 1961-1963, na época de Kennedy, esse processo se completou e Cuba passou a ser o único país comunista do Hemisfério Ocidental e um importante aliado dos soviéticos na Guerra Fria.
A invasão da Baía dos Porcos (1961). Ao assumir a presidência, Kennedy foi informado do plano da CIA para derrubar Fidel Castro utilizando-se de uma força de 1400 exilados cubanos e mercenários (a Brigada 2506) financiados, armados e treinados pelos EUA na Guatemala e comandados por ex-oficiais do exército de Batista. O plano original previa que os exilados invadiriam Cuba com apoio aéreo americano. A notícia da invasão, pensava-se, despertaria uma revolta popular contra Fidel. Kennedy aprovou o plano, mas fez algumas modificações. A mais importante foi cancelar a participação militar americana direta (o apoio aéreo) para dar a impressão de que a invasão era integralmente “cubana” e não uma intervenção dos EUA, legitimando toda a operação. Essa decisão contribuiu para o fracasso da invasão que, de uma maneira geral, foi mal preparada. Além disso, Fidel foi previamente informado da operação pelo serviço de inteligência soviético. Em 15 de abril, a aviação rebelde, partindo da Nicarágua, atacou aeroportos em Cuba, precipitando medidas repressoras de Fidel contra os opositores, reais ou não. Nos dias seguintes, 100 mil suspeitos de apoiar os invasores foram detidos, entre eles todos os bispos e muitos jornalistas, o que praticamente eliminou as chances de uma revolta contra o regime. No dia 16 de abril, véspera da invasão, Fidel deixou clara a sua posição declarando em um comício que a revolução cubana era socialista. A invasão propriamente dita começou no dia 17 de abril na Baía dos Porcos, na costa centro-sul da ilha, e desde o início foi um desastre. Os invasores possuíam poucos aviões de combate (que para piorar eram antiquados) e suas forças terrestres eram numericamente inferiores aos efetivos do exército revolucionário, reforçado pelas milícias populares organizadas pelo regime – no total mais de 50 mil combatentes. Fidel Castro realmente era odiado por parte dos cubanos, mas seu governo também tinha o respaldo de outra parte da população, sobretudo dos trabalhadores pobres e dos grupos nacionalistas, o que dificultava uma sublevação. Os exilados foram contidos na praia de desembarque e nenhuma revolta ocorreu. No dia 19 de abril, a operação anticastrista terminou em total fiasco. Mais de 100 invasores morreram e 1200 foram capturados (a maioria seria libertada em dezembro de 1962, trocada por alimentos e remédios dos EUA). As baixas cubanas foram estimadas entre 2000 e 5000, a maior parte vítima dos bombardeios aéreos da aviação dos exilados. Apesar das restrições de Kennedy quanto à participação direta dos EUA, o envolvimento americano foi óbvio em toda a operação. A invasão da Baía dos Porcos só serviu para radicalizar o nacionalismo popular cubano e aumentar o apoio interno ao regime de Fidel Castro. O antiamericanismo cresceu em Cuba, na América Latina e várias partes do mundo. O governo dos guerrilheiros cubanos adquiriu mais fama e apoio internacional junto aos movimentos de esquerda, demonstrando ser possível a um pequeno país enfrentar com sucesso o imperialismo de uma superpotência, como um Davi enfrentando um Golias. Na euforia do momento, passou despercebido que os EUA efetivamente não utilizaram o seu enorme poderio militar contra Cuba, mas apenas apoiaram de maneira incompetente e irresponsável uma pequena força mal preparada de invasores. O episódio da invasão fracassada também serviu de pretexto para Fidel Castro aumentar a repressão em Cuba e fortalecer o seu poder, além de acelerar a aproximação cubano-sovética. Em julho de 1961, o M-26-7 fundiu-se com o PSP para formar as Organizações Revolucionárias Integradas ou ORI; em dezembro de 1961, Fidel anunciou que era um seguidor do marxismo-leninismo e, em março de 1962, a ORI virou o Partido Unido da Revolução Socialista Cubana ou PURSC (em 1965 mudou o nome para Partido Comunista de Cuba), com o monopólio do poder político. O crescimento da repressão e o avanço do comunismo em Cuba, por sua vez, aumentou a fuga de cubanos do país (80 mil pessoas em 1961)
O embargo comercial e a Operação Mangusto (1961-1962). Apesar do fracasso humilhante da invasão da Baía dos Porcos, o governo Kennedy continuou tentando derrubar Fidel Castro. Em novembro de 1961, ele autorizou um outro plano para desestabilizar o regime cubano – a Operação Mangusto ou “Projeto Cubano”. Iniciada em março de 1962, a Operação Mangusto empregou diversos meios (sabotagens, infiltração de agentes e tentativas de assassinatos de autoridades) para gerar o caos em Cuba e, esperava-se, causar uma revolta popular contra Fidel por volta de outubro. Antes da Operação Mangusto entrar em ação, os EUA buscaram isolar Cuba no front diplomático e econômico. Em janeiro de 1962, sob pressão do governo americano, a OEA expulsou Cuba da organização (o Brasil se absteve na votação da resolução) e, em fevereiro, Kennedy decretou o embargo econômico total dos EUA contra Cuba (a OEA aderiu ao embargo em 1964, mas suspendeu-o em 1975). No mesmo mês, Fidel lançou a Segunda Declaração de Havana, apelando aos revolucionários da América Latina para que agissem contra os regimes da região e o imperialismo americano.
A crise dos mísseis (1962). Para Fidel Castro e Khrushchev, a derrota dos exilados cubanos na Baía dos Porcos não havia eliminado a ameaça de uma intervenção militar americana em Cuba. Ao contrário, a vitória do regime revolucionário e a transformação de Cuba em um país socialista aliado da URSS reforçavam a possibilidade de que os EUA agiriam militarmente para recuperar o controle sobre a ilha e o prestígio internacional americano. A guerra econômica intensificada por Kennedy, as ações da Operação Mangusto e o isolamento de Cuba no Hemisfério Ocidental pareciam indicar que os EUA estavam preparando uma invasão. Na verdade, Kennedy tinha desistido de invadir Cuba em 1962, embora não descartasse fazer isso no futuro. Khrushchev, por sua vez, considerava prioridade defender Cuba e ampliar a influência soviética sobre a ilha por razões ideológicas e estratégicas. A adesão de Cuba ao comunismo como aliada de Moscou tinha um forte simbolismo e causava um grande impacto psicológico, demonstrando a impotência americana em controlar os acontecimentos na sua tradicional esfera de domínio e a capacidade da URSS de projetar internacionalmente a sua influência no mundo. Para Khrushchev, isso compensava a humilhação de ter que aceitar o controle americano, britânico e francês de Berlim Ocidental, além de reforçar a liderança soviética no bloco socialista no momento em que ocorria a ruptura entre a URSS e a China comunista (outubro 1961). Além disso, por sua posição geográfica (150 km da costa da Flórida), Cuba dava aos soviéticos uma oportunidade única para reduzir ou mesmo eliminar a superioridade dos EUA em armamentos nucleares. Essa superioridade fora ampliada quando, em 1961, depois de uma longa negociação, os EUA convenceram a Turquia, país fronteiriço com a URSS, a aceitar a instalação de mísseis nucleares Júpiter em seu território. Os mísseis ficaram operacionais no início de 1962 e, embora sua tecnologia tenha ficado obsoleta, deixaram a URSS mais vulnerável no caso de uma guerra contra os EUA. Khrushchev protestou inutilmente contra os “mísseis turcos”. Contudo, o estabelecimento de bases de mísseis nucleares americanos em um país vizinho da URSS abriu um precedente para os soviéticos fazerem o mesmo em relação aos EUA.
Em maio de 1962, Fidel Castro e Khrushchev decidiram pela instalação em Cuba, de 36 MRBM (medim-range ballistic missiles ou mísseis balísticos de médio alcance de modelo R-12 ou SS-4 Sandal, com alcance de 1600 km) e 24 IRBM (intermediate-range ballistic missiles ou mísseis balísticos de alcance intermediário do tipo R-14 ou SS-5 Skean, com alcance de 4000 km). Sob o nome de Operação Anadyr, o plano envolvia também o envio de bombardeiros IL-28, caças MiG-21, baterias de mísseis antiaéreos e 60 mil tropas para a ilha caribenha, na maior mobilização militar ultramarina da história soviética. A Operação Anadyr seria complementada pela Operação Kama – a construção de uma base para o estacionamento de 11 submarinos lançadores de mísseis nucleares. Por insistência de Khrushchev, todas as operações seriam feitas em segredo. Os armamentos e soldados começaram a chegar em junho e, no início de outubro, a base naval começou a ser construída. Paralelamente, o regime cubano ampliou e modernizou as suas forças armadas de 40 mil homens, reforçadas por 300 mil milicianos.
Desde o início, os EUA perceberam que uma grande operação militar estava sendo montada em Cuba. Em julho, o serviço de inteligência da França chegou a alertar a CIA de que a URSS estava instalando mísseis em território cubano, mas o governo americano não acreditou. No final de agosto, aviões americanos fotografaram lançadores de mísseis de defesa antiaérea. No dia 4 de setembro, Kennedy afirmou para o Congresso americano que não havia indícios da existência de mísseis nucleares em Cuba. No mesmo dia, o embaixador soviético em Washington confirmou que os mísseis em Cuba eram defensivos e que não havia motivo de alarme. No entanto, no dia 8 de setembro os primeiros mísseis nucleares chegaram a Cuba. No dia 11, o governo soviético comunicou que a URSS não possuía armas nucleares fora do seu território e Khrushchev assegurou pessoalmente ao presidente americano que não pretendia instalar armamentos ofensivos na ilha caribenha. A verdade foi revelada no dia 14 de outubro, quando um avião americano U-2 de reconhecimento descobriu e fotografou os lançadores de mísseis SS-4. No dia 16, Kennedy viu as fotos e organizou um Comitê de Segurança Nacional para analisar o fato e propor medidas imediatas. Era o início da Crise dos Mísseis Cubanos, chamada também de Crise de Outubro ou Crise Caribenha – 13 dias de confronto entre os EUA e a URSS (junto com Cuba), no episódio mais tenso da Guerra Fria, quando as duas superpotências estiveram próximas de um conflito militar de conseqüências imprevisíveis.
No dia 18 de outubro, Kennedy encontrou-se com o ministro das relações exteriores da URSS, Andrei Gromyko, que, desconhecendo que o presidente americano já sabia da existência dos mísseis, reafirmou que não havia armas ofensivas soviéticas em Cuba. No dia seguinte, os americanos descobriram que pelo menos quatro lançadores de mísseis eram operacionais. A insistência soviética em mentir sobre o assunto e caráter secreto da instalação dos mísseis (ao contrário dos similares americanos na Turquia, que foram instalados abertamente) pareciam indicar que a URSS planejava algum ataque surpresa contra os EUA. Mesmo que os soviéticos pensassem em revelar a existência do arsenal nuclear no Caribe depois que ele estivesse totalmente instalado, era uma situação não só militar como politicamente inaceitável para os EUA: tolerar os mísseis seria um sinal de fraqueza americana, com implicações gravíssimas para a liderança do país nas Américas e no bloco capitalista de uma maneira geral.
Os militares americanos pressionaram Kennedy para que ordenasse um ataque aéreo a Cuba, preferencialmente seguido de invasão. Embora não descartasse totalmente essa possibilidade, ele optou primeiro por um bloqueio naval da ilha, oficialmente chamado de “quarentena”: a marinha americana cercaria Cuba e impediria a chegada de navios carregando equipamentos militares. Os navios só seriam autorizados a passar pelo bloqueio depois de inspecionados e a quarentena só seria suspensa se a URSS assegurasse que iria retirar os mísseis imediatamente.
No dia 22 de outubro, Kennedy fez um pronunciamento na televisão anunciando a descoberta dos mísseis e a imposição do bloqueio naval. No dia 23, a OEA apoiou a medida. No mesmo dia, Khrushchev afirmou que o bloqueio era ilegal e que não iria respeitá-lo. No dia 24, o bloqueio começou a ser aplicado. Nessa altura, já tinham chegado a Cuba 42 mísseis, acompanhados por 47 mil soldados soviéticos, embora apenas 9 foguetes estivessem plenamente operacionais. Os navios que rumavam para Cuba acabaram se desviando (um navio-tanque conseguiu furar o bloqueio no dia 25). A quarentena deixou Cuba isolada, mas a URSS não parecia disposta a retirar os mísseis. A situação piorou no dia 26 quando, diante do impasse, Kennedy deu sinais de que considerava ser necessário invadir a ilha para destruir os mísseis. No mesmo dia, Fidel Castro tentou convencer Khrushchev a atacar os EUA. No dia seguinte, um avião americano foi derrubado sobre Cuba e outro atingido pelo fogo antiaéreo.
No entanto, paralelamente a escalada da crise, Kennedy e Khrushchev, continuaram mantendo contatos formais (telegramas, embaixadores) e informais (pronunciamentos em rádio, intermediação de outros países e da ONU) buscando uma solução negociada. O agravamento do confronto nos dias 26-27 e o temor de uma guerra que não interessava aos dois dirigentes forçaram o estabelecimento do Acordo Kennedy-Khrushchev, no dia 28 de outubro, encerrando a crise: os EUA suspenderiam o bloqueio naval e a URSS retiraria seus mísseis, bombardeiros e a maior parte das tropas soviéticas de Cuba. Essas decisões foram públicas, porém o acordo envolvia secretamente outras duas contrapartidas dos EUA: eles retirariam os seus mísseis da Turquia alguns meses depois e se comprometeriam em não invadir Cuba, desde que o regime de Fidel Castro não ameaçasse diretamente a segurança nacional americana. Como o compromisso soviético foi público e o americano secreto, aparentemente somente a URSS é que havia cedido, parecendo que Kennedy tinha triunfado completamente sobre Khrushchev e Fidel.
Conseqüências do Acordo Kennedy-Khrushchev. O acordo evitou uma guerra nuclear, mas gerou descontentamento nos dois lados. Pelo menos uma parte dos militares americanos ficou insatisfeita, por considerar que os EUA cederam demais e perderam a oportunidade de destruir o regime comunista cubano. O recuo de Khrushchev também foi criticado por membros do Partido Comunista da URSS, que o consideraram humilhante, além de não ter resolvido a questão de Berlim Ocidental. Fidel Castro também condenou o acordo, sobretudo por não ter sido consultado, e pelo fato da negociação não envolver a retirada americana de Guantánamo. No entanto, a solução da crise foi muito favorável ao seu governo, que conseguiu escapar de uma invasão americana e sobreviver como o único regime comunista da América.
A sobrevivência do socialismo cubano e suas conseqüências. Como os demais países socialistas, Cuba adotou um modelo político e econômico caracterizado pela ditadura monopartidária (do partido comunista) em nome dos trabalhadores e pela estatização dos meios de produção e dos serviços. Foram feitos grandes investimentos na educação e saúde públicas que, além de terem a sua qualidade melhorada, beneficiaram um número maior de cidadãos, transformando-se nas principais “vitrines” do regime de Fidel Castro. Contudo, o país continuou possuindo uma economia agrária dependente da exportação de açúcar e do auxílio financeiro estrangeiro, particularmente da URSS. Apesar do desenvolvimento econômico limitado, da forte repressão política e da censura, uma parte expressiva da população apoiou o regime por causa dos ganhos sociais, do carisma de Fidel Castro e do sentimento nacionalista que se confundia com ideais socialistas e antiamericanos. Esse nacionalismo era reforçado pela crença de que os cubanos haviam derrotado o imperialismo americano em 1959-1962 e o derrotariam novamente no futuro, desde que mantivessem uma forte união em torno do regime revolucionário e do seu líder supremo. Muitos cubanos, no entanto, sobretudo das antigas elites econômicas e da classe média, não tinham essa avaliação. Eles odiavam o comunismo por ele combinar a repressão política, a intolerância ideológica, a eliminação da propriedade privada e a supressão da liberdade econômica individual, em um quadro de redução drástica do padrão de vida (dos ricos e da classe média) pelo nivelamento “por baixo”, resultado de medidas igualitárias e coletivistas que visavam beneficiar os segmentos mais pobres da sociedade cubana. Nesse contexto, 70 mil cubanos fugiram para os EUA em 1962. No total, entre 1959 e 1962, 190 mil pessoas fugiram de Cuba, que tinha 6 milhões de habitantes. Em 1965-1971, outros 250 mil cubanos fugiram do país. No final da década de 1980, o número de refugiados cubanos nos EUA aproximou-se de um milhão, cerca de 10% da população de Cuba.
A internacionalização da Revolução Cubana. A consolidação do regime de Fidel Castro em Cuba, com suas características socialistas, nacionalistas e antiamericanas – um conjunto de elementos que seus partidários classificaram de “antiimperialistas” – naturalmente teve um grande impacto na América Latina durante a Guerra Fria, exercendo uma forte influência sobre as esquerdas da região e de outras partes do Terceiro Mundo, como a África. Com efeito, Cuba estimulou, muitas vezes de forma direta, os movimentos revolucionários latino-americanos e africanos de um jeito que nem mesmo a URSS havia feito. Um dos principais defensores da “exportação” ou internacionalização da Revolução Cubana na década de 1960 foi Che Guevara. Suas idéias inspiraram o desenvolvimento de um modelo revolucionário baseado na “teoria do foco” ou “foquismo”: a guerrilha de base rural, estabelecida a partir de um pequeno grupo ou “foco” de guerrilheiros profissionais e dedicados que, gradualmente, ganhariam o apoio dos camponeses, ampliando o número de combatentes até gerar um movimento popular que levaria a derrubada de um regime. Embora o modelo original destacasse a revolução no meio rural com apoio camponês, essa teoria foi adaptada para a luta revolucionária nas grandes cidades – a guerrilha urbana. Essas idéias de luta armada são herdeiras de uma tradição revolucionária mais antiga na América Latina, anterior a penetração do marxismo na região. O que a Revolução Cubana fez foi combinar essa tradição com as idéias marxistas, dando uma outra dimensão aos movimentos revolucionários e aos seus objetivos. Ao contrário do que se costuma supor, essas idéias não tiveram apoio unânime dos partidos comunistas latino-americanos, que ficaram, na verdade, rachados quanto a melhor tática a ser empregada em prol da revolução socialista a curto, médio ou longo prazo (guerrilha rural ou urbana, aliança com grupos nacionalistas, infiltração do movimento operário, influência cultural no sistema educacional e na mídia etc). Essas divergências sobre os métodos revolucionários, no entanto, não impediram que as diversas correntes da esquerda latino-americana apoiassem o comunismo cubano e buscassem inspiração ou algum tipo de ajuda junto ao regime de Fidel Castro. De qualquer forma, é possível que 2 mil latino-americanos tenham sido treinados nas técnicas de guerrilha em Cuba na década de 60.
Na verdade, na maior parte dos casos, a luta armada influenciada ou apoiada por Cuba fracassou. Em 1962-1963, o governo cubano ajudou na organização de um grupo guerrilheiro na Argentina que foi rapidamente destruído. Em 1963-1967, outro grupo maior foi organizado na Venezuela, mas também foi mal-sucedido. Em 1965, Che Guevara e uma centena de guerrilheiros negros cubanos foram enviados ao Zaire (Congo belga), na África Central, para ajudar rebeldes marxistas na guerra civil congolesa, sem sucesso. Em 1966, o governo cubano patrocinou a criação da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade) com o objetivo de cooperar com os grupos revolucionários da América Latina. Em 1966-1967, Che Guevara e um pequeno grupo de cubanos tentou organizar uma guerrilha na Bolívia. A expedição revolucionária fracassou e Che foi capturado e morto pelas forças bolivianas (outubro, 1967). O maior envolvimento cubano no exterior foi em Angola, antiga colônia portuguesa na África, que ficou independente em 1975. O país ficou mergulhado na guerra civil entre o governo marxista do MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola), encabeçado por Agostinho Neto, e grupos rivais (FNLA ou Frente Nacional Pela Libertação de Angola e UNITA ou União Nacional Pela Independência Total de Angola) apoiados pela África do Sul e os EUA. A URSS e Cuba, por sua vez, apoiaram o governo angolano. A ajuda militar de Havana foi decisiva para a sobrevivência do MPLA: mais de 60 mil soldados cubanos foram enviados a Angola em 1975-1991, participando de vários combates contra as tropas sul-africanas. A segunda maior participação de Cuba em um conflito internacional foi também em outro país africano, a Etiópia: 24 mil soldados cubanos foram enviados para o país em 1977-1979 durante a guerra contra a vizinha Somália.
(b) A Aliança Para o Progresso (1961) Aliança Para o Progresso foi o nome do programa de ajuda econômica dos EUA aos países da América Latina na década de 1960. Desde o final dos anos 40, cogitava-se a possibilidade dos EUA auxiliarem o desenvolvimento dos países latino-americanos com um programa semelhante ao Plano Marshall aplicado na Europa, mas os governos Truman e Eisenhower resistiram por não considerarem a região prioritária para esse tipo de ação. De fato, entre 1948 e 1958, a América Latina recebeu apenas 2.4% da ajuda econômica americana no exterior. Entretanto, o crescimento do antiamericanismo, demonstrado na viagem de Nixon de 1958, e, sobretudo, o temor da influência da Revolução Cubana na região levaram os EUA a mudarem de posição na época em que Kennedy assumiu a presidência. Baseada em uma proposta de Juscelino Kubitschek (a Operação Pan-Americana de 1958), a Aliança Para o Progresso foi lançada oficialmente pelos EUA na Conferência Interamericana de Punta del Este, no Uruguai (agosto, 1961). O programa tinha o objetivo de desenvolver a democracia liberal e a modernização capitalista na América Latina para conter a penetração do comunismo. Originalmente, a Aliança Para o Progresso previa empréstimos facilitados, o planejamento econômico com objetivo de industrialização e investimentos sociais visando uma drástica redução da pobreza (alfabetização em massa, melhoria e ampliação da saúde pública, reforma agrária em áreas improdutivas) por um período de 10 anos. Entretanto, os seus resultados foram limitados. A América Latina recebeu mais de 22 bilhões de dólares em auxílio econômico durante uma década, a industrialização avançou e o crescimento das economias latino-americanas ultrapassou o nível dos anos 50 (mais de 3% em 1970, comparado aos 2.1% da década de 1950), mas isso foi insuficiente. Além de a região precisar de muito mais recursos, grande parte do dinheiro retornou para os EUA sob a forma de pagamento da dívida ou da remessa de lucro das empresas americanas multinacionais. Por outro lado, as elites econômicas resistiram em fazer as reformas sociais mais fundamentais, sobretudo a reforma agrária, e o analfabetismo diminuiu pouco. Além disso, em um contexto de radicalização política, crescimento dos movimentos populares reformistas e reação dos grupos conservadores, os regimes democráticos na região, tradicionalmente frágeis, não obtiveram o apoio que se esperava da cada vez mais numerosa classe média urbana e entraram em colapso, sendo substituídos por ditaduras militares. Apesar do desgosto de Kennedy com os golpes de Estado em 1962-1963 na Argentina, Peru, Guatemala, Equador, Republica Dominicana e Honduras, na prática ele pouco fez para efetivamente apoiar as democracias nesses países (com exceção do Peru, redemocratizado em 1963). A situação política se agravou e a Aliança Para o Progresso tomou um novo rumo depois que Kennedy foi assassinado (novembro 1963) e Lyndon B. Johnson assumiu a presidência dos EUA (1963-1969). Johnson manteve a ajuda econômica, mas questionou a viabilidade das reformas sociais na América Latina e a capacidade da região enfrentar a ameaça comunista por meios democráticos (ele estava especialmente preocupado que o Brasil, governado por João Goulart, virasse uma “nova China comunista”). O resultado foi o apoio do seu governo à instalação de ditaduras militares antipopulistas e anticomunistas, vistas como o melhor instrumento para a contenção dos movimentos revolucionários latino-americanos e para a criação da estabilidade política necessária ao desenvolvimento do capitalismo na América Latina, auxiliado e vinculado aos EUA.
Wednesday, August 15, 2007
3 Ano - O Brasil na Segunda Guerra
O Brasil e a Segunda Guerra Mundial
a) Os EUA e a América Latina na década de 1930
O governo Franklin D. Roosevelt (1933-1945). FDR buscou consolidar a hegemonia dos EUA no Hemisfério Ocidental (as Américas) e afastar a crescente influência ideológica e econômica da Alemanha nazista na região. Visando criar uma imagem positiva dos EUA na América Latina para fortalecer sua liderança e ampliar os laços comerciais interamericanos, Roosevelt adotou a Política de Boa Vizinhança:
– Não-intervenção nos assuntos internos dos países latino-americanos, implicando em tolerar regimes autoritários e nacionalistas apesar de algumas divergências econômicas (criação de estatais e industrialização com substituição de importações)
– Fim das intervenções militares americanas na América Central e Caribe
– Assistência econômica e acordos comerciais com os países latino-americanos (exemplo: criação do Export-Import Bank em 1934 para financiar as compras latino-americanas de produtos dos EUA)
As conferências interamericanas. Fundamental para a Política da Boa Vizinhança foram as conferências regionais pan-americanas organizadas periodicamente entre os EUA e os países da América Latina voltadas para a ampliação da solidariedade e cooperação hemisféricas. As conferências de Buenos Aires (1936) e de Lima (1938) estabeleceram o compromisso da segurança coletiva contra agressões que partissem de potências não-americanas e mecanismos de consulta mútua. De certa forma, isso transformou a Doutrina Monroe dos EUA em uma doutrina multilateral interamericana. Na I Reunião de Consulta, no Panamá (1939), foi declarada a neutralidade dos países americanos na guerra européia. A Reunião de Havana (1940) reforçou o compromisso de defesa mútua em face de uma ameaça externa.
b) O Estado Novo entre a Alemanha e os EUA (1937-1940)
O crescimento da influência alemã na Era Vargas. Ainda no início do governo constitucional de Vargas (1934-1937), portanto antes da instalação da ditadura do Estado Novo, o governo de Hitler lançou uma ofensiva diplomática e comercial no Brasil visando fortalecer os laços germano-brasileiros. Em 1934, foi assinado um acordo que expandiu o comércio bilateral entre a Alemanha e o Brasil. A instalação da ditadura estadonovista, com seus traços fascistas, parecia favorecer essa investida alemã. De fato, as importações brasileiras de produtos alemães em 1936-1938 superaram as americanas e transformaram a Alemanha na nossa principal parceira comercial. As relações germano-brasileiras, contudo, não ficaram livres de problemas e tensões, sobretudo por causa da repressão getulista às organizações nazistas que atuavam no sul do Brasil junto aos imigrantes alemães. Em fevereiro de 1938, o governo fechou o quartel-general nazista no RS e, em abril, proibiu organizações políticas estrangeiras em todo o país. Além disso, a repressão ao levante integralista em maio de 1938 parecia afastar ainda mais o Estado Novo do fascismo. As ações antinazistas e antifascistas de Vargas, porém, não abalaram o comércio Brasil-Alemanha e nem impediram a compra de armamento alemão para o reaparelhamento do exército brasileiro (acordo de março de 1938). No entanto, a eclosão da guerra na Europa, em setembro de 1939, seguida pelo bloqueio naval britânico à Alemanha, reduziu drasticamente o comércio alemão com o Brasil e estreitou, em contrapartida, os laços comerciais brasileiros com os EUA.
As divisões internas no Estado Novo. O Brasil ficou oficialmente neutro na Segunda Guerra Mundial até o início de 1942. No entanto, os membros do Estado Novo ficaram divididos em dois grupos quanto ao possível alinhamento do Brasil no conflito internacional: os germanófilos, simpáticos à Alemanha (Filinto Muller, chefe da Polícia do DF; general Eurico Dutra, Ministro da Guerra; general Góis Monteiro, comandante do Estado-Maior do Exército; Francisco Campos, Ministro da Justiça) e os americanistas, favoráveis aos EUA (Oswaldo Aranha, ex-embaixador nos EUA e Ministro das Relações Exteriores).
A posição de Vargas. Inicialmente, Vargas apresentou sinais contraditórios e ambíguos sobre sua posição na eventualidade do Brasil entrar na guerra (alinhamento com o Eixo ou com os EUA?). Ao mesmo tempo em que participava das conferências pan-americanas patrocinadas pelos EUA e estabelecia acordos comerciais com os americanos, buscou manter boas relações com a Alemanha e Itália. Na verdade, seu governo tentou extrair benefícios da disputa entre EUA e Alemanha pela influência no Brasil – uma posição que foi chamada de “eqüidistância pragmática”. De fato, para ele a questão central era obter financiamento externo para o programa brasileiro de industrialização, sobretudo para a criação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e a construção de uma usina siderúrgica em Volta Redonda, RJ. Em um primeiro momento, os EUA resistiram em financiá-la, levando Vargas a sinalizar sua simpatia pela causa do Eixo. Diante disso, os EUA mudaram sua posição e aceitaram apoiar o projeto industrial getulista, afastando o Brasil da Alemanha. Principais momentos:
– 1940, 11 junho. Discurso de Vargas no encouraçado Minas Gerais simpático ao Eixo: “Os países fortes têm direito de buscar um lugar ao sol”. Mussolini enviou uma mensagem à Vargas elogiando seu discurso.
– 1940, setembro. EUA decidem financiar a CSN em troca da exclusividade na importação de minerais estratégicos e borracha do Brasil.
c) A construção da aliança Brasil-EUA (1940-1942)
Os interesses do Brasil e dos EUA. Gradualmente, entre 1940 e 1942, os governos de Vargas e de Roosevelt construíram uma aliança estratégica que culminou na transformação do Brasil no principal parceiro político, militar e econômico dos EUA na América Latina e na entrada do Estado Novo na guerra contra a Alemanha. Na construção dessa aliança, os EUA queriam o fornecimento de minerais estratégicos brasileiros e a cessão de bases militares no nordeste do Brasil. Em contrapartida, o Brasil queria recursos para a modernização de suas forças armadas e para o programa de industrialização. Principais momentos da construção dessa aliança:
– 1940, outubro. Criação da Comissão Mista Brasil-EUA, voltada para o aprimoramento de medidas comuns de defesa.
– 1941, julho. O Brasil autoriza a instalação de bases militares americanas no nordeste.
– 1942, janeiro. Conferência do Rio de Janeiro (Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores dos países americanos): assumindo o compromisso de solidariedade hemisférica com os EUA, que haviam entrado na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941, o Brasil e a maioria dos países da América Latina rompem relações diplomáticas com o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
– A Alemanha reagiu afundando navios brasileiros (o primeiro foi o cargueiro Buarque): em 7 meses 19 navios foram afundados, matando 740 pessoas. No Brasil, aumentou a pressão interna pelo engajamento do país no conflito contra o Eixo.
– 1942, 4 julho. Passeata organizada pela UNE e apoiada por Oswaldo Aranha exige a entrada do Brasil na guerra. O germanófilo Filinto Muller, chefe da Polícia, que havia prometido proibir a manifestação, desistiu de reprimi-la e se demitiu.
– 1942, 15-17 agosto. Alemanha afunda 5 navios brasileiros
– 1942, 18 agosto. Grandes protestos nas capitais dos estados brasileiros exigem a declaração de guerra ao Eixo.
– 1942, 21 agosto. Vargas declara o estado de beligerância
– 1942, 25 agosto. O germanófilo general Góis Monteiro afasta-se do comando do Estado-Maior do Exército alegando motivo de saúde.
– 1942, 31 agosto. O Brasil declara guerra à Alemanha e Itália.
d) O Brasil na guerra (1942-1945)
O Brasil foi o único país da América Latina que enviou tropas para a Europa na Segunda Guerra Mundial, onde participou diretamente dos combates contra a Alemanha (o México enviou um grupo aéreo que lutou contra os japoneses no Pacífico). A decisão de organizar uma força expedicionária do exército (FEB ou Força Expedicionária Brasileira), apoiada por unidades aéreas (FAB ou Força Aérea Brasileira) partiu da insistência de militares brasileiros e do governo Vargas, movidos pelo nacionalismo e pela busca de prestígio internacional. O Brasil lutou na Itália em 1944-1945, com suas forças subordinadas ao V Exército Americano (parte do XV Grupo de Exército), concentrando suas ações contra as defesas alemãs da Linha Gótica. A marinha brasileira também atuou na guerra em missões de patrulha e combate anti-submarino no Atlântico. Principais momentos:
– 1943, agosto. O Estado Novo decide enviar combatentes à guerra contra a Alemanha; o plano era criar um Corpo de Exército com 3 divisões, mas só a 1 Divisão de Infantaria Expedicionária (I DIE, depois chamada de FEB), com mais de 25 mil homens, foi organizada. A estrutura e os equipamentos eram americanos. O comando da FEB ficou com o general Mascarenhas de Morais.
– 1943, dezembro. Formação do primeiro agrupamento de caças da FAB.
– 1944, julho. Início do envio das tropas brasileiras à Itália, que são integradas ao V Exército Americano comandado pelo general Mark Clark.
– 1944, setembro. Primeiros combates da FEB na Itália
– 1945, fevereiro. A FEB toma Monte Castello, controlado pelos alemães, depois de mais de 3 meses de combate. Foi a ação militar mais famosa do Brasil na guerra.
– 1945, fevereiro-abril. A FEB avança no norte da Itália.
– 1945, abril. Mais de 16 mil soldados alemães, junto com unidades fascistas italianas, se rendem a FEB próximo de Fornovo.
– 1945, maio. A FEB alcança Turim, onde se encontra com tropas francesas aliadas, e persegue o exército alemão em fuga nos Alpes. Nesse momento, a guerra termina.
a) Os EUA e a América Latina na década de 1930
O governo Franklin D. Roosevelt (1933-1945). FDR buscou consolidar a hegemonia dos EUA no Hemisfério Ocidental (as Américas) e afastar a crescente influência ideológica e econômica da Alemanha nazista na região. Visando criar uma imagem positiva dos EUA na América Latina para fortalecer sua liderança e ampliar os laços comerciais interamericanos, Roosevelt adotou a Política de Boa Vizinhança:
– Não-intervenção nos assuntos internos dos países latino-americanos, implicando em tolerar regimes autoritários e nacionalistas apesar de algumas divergências econômicas (criação de estatais e industrialização com substituição de importações)
– Fim das intervenções militares americanas na América Central e Caribe
– Assistência econômica e acordos comerciais com os países latino-americanos (exemplo: criação do Export-Import Bank em 1934 para financiar as compras latino-americanas de produtos dos EUA)
As conferências interamericanas. Fundamental para a Política da Boa Vizinhança foram as conferências regionais pan-americanas organizadas periodicamente entre os EUA e os países da América Latina voltadas para a ampliação da solidariedade e cooperação hemisféricas. As conferências de Buenos Aires (1936) e de Lima (1938) estabeleceram o compromisso da segurança coletiva contra agressões que partissem de potências não-americanas e mecanismos de consulta mútua. De certa forma, isso transformou a Doutrina Monroe dos EUA em uma doutrina multilateral interamericana. Na I Reunião de Consulta, no Panamá (1939), foi declarada a neutralidade dos países americanos na guerra européia. A Reunião de Havana (1940) reforçou o compromisso de defesa mútua em face de uma ameaça externa.
b) O Estado Novo entre a Alemanha e os EUA (1937-1940)
O crescimento da influência alemã na Era Vargas. Ainda no início do governo constitucional de Vargas (1934-1937), portanto antes da instalação da ditadura do Estado Novo, o governo de Hitler lançou uma ofensiva diplomática e comercial no Brasil visando fortalecer os laços germano-brasileiros. Em 1934, foi assinado um acordo que expandiu o comércio bilateral entre a Alemanha e o Brasil. A instalação da ditadura estadonovista, com seus traços fascistas, parecia favorecer essa investida alemã. De fato, as importações brasileiras de produtos alemães em 1936-1938 superaram as americanas e transformaram a Alemanha na nossa principal parceira comercial. As relações germano-brasileiras, contudo, não ficaram livres de problemas e tensões, sobretudo por causa da repressão getulista às organizações nazistas que atuavam no sul do Brasil junto aos imigrantes alemães. Em fevereiro de 1938, o governo fechou o quartel-general nazista no RS e, em abril, proibiu organizações políticas estrangeiras em todo o país. Além disso, a repressão ao levante integralista em maio de 1938 parecia afastar ainda mais o Estado Novo do fascismo. As ações antinazistas e antifascistas de Vargas, porém, não abalaram o comércio Brasil-Alemanha e nem impediram a compra de armamento alemão para o reaparelhamento do exército brasileiro (acordo de março de 1938). No entanto, a eclosão da guerra na Europa, em setembro de 1939, seguida pelo bloqueio naval britânico à Alemanha, reduziu drasticamente o comércio alemão com o Brasil e estreitou, em contrapartida, os laços comerciais brasileiros com os EUA.
As divisões internas no Estado Novo. O Brasil ficou oficialmente neutro na Segunda Guerra Mundial até o início de 1942. No entanto, os membros do Estado Novo ficaram divididos em dois grupos quanto ao possível alinhamento do Brasil no conflito internacional: os germanófilos, simpáticos à Alemanha (Filinto Muller, chefe da Polícia do DF; general Eurico Dutra, Ministro da Guerra; general Góis Monteiro, comandante do Estado-Maior do Exército; Francisco Campos, Ministro da Justiça) e os americanistas, favoráveis aos EUA (Oswaldo Aranha, ex-embaixador nos EUA e Ministro das Relações Exteriores).
A posição de Vargas. Inicialmente, Vargas apresentou sinais contraditórios e ambíguos sobre sua posição na eventualidade do Brasil entrar na guerra (alinhamento com o Eixo ou com os EUA?). Ao mesmo tempo em que participava das conferências pan-americanas patrocinadas pelos EUA e estabelecia acordos comerciais com os americanos, buscou manter boas relações com a Alemanha e Itália. Na verdade, seu governo tentou extrair benefícios da disputa entre EUA e Alemanha pela influência no Brasil – uma posição que foi chamada de “eqüidistância pragmática”. De fato, para ele a questão central era obter financiamento externo para o programa brasileiro de industrialização, sobretudo para a criação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e a construção de uma usina siderúrgica em Volta Redonda, RJ. Em um primeiro momento, os EUA resistiram em financiá-la, levando Vargas a sinalizar sua simpatia pela causa do Eixo. Diante disso, os EUA mudaram sua posição e aceitaram apoiar o projeto industrial getulista, afastando o Brasil da Alemanha. Principais momentos:
– 1940, 11 junho. Discurso de Vargas no encouraçado Minas Gerais simpático ao Eixo: “Os países fortes têm direito de buscar um lugar ao sol”. Mussolini enviou uma mensagem à Vargas elogiando seu discurso.
– 1940, setembro. EUA decidem financiar a CSN em troca da exclusividade na importação de minerais estratégicos e borracha do Brasil.
c) A construção da aliança Brasil-EUA (1940-1942)
Os interesses do Brasil e dos EUA. Gradualmente, entre 1940 e 1942, os governos de Vargas e de Roosevelt construíram uma aliança estratégica que culminou na transformação do Brasil no principal parceiro político, militar e econômico dos EUA na América Latina e na entrada do Estado Novo na guerra contra a Alemanha. Na construção dessa aliança, os EUA queriam o fornecimento de minerais estratégicos brasileiros e a cessão de bases militares no nordeste do Brasil. Em contrapartida, o Brasil queria recursos para a modernização de suas forças armadas e para o programa de industrialização. Principais momentos da construção dessa aliança:
– 1940, outubro. Criação da Comissão Mista Brasil-EUA, voltada para o aprimoramento de medidas comuns de defesa.
– 1941, julho. O Brasil autoriza a instalação de bases militares americanas no nordeste.
– 1942, janeiro. Conferência do Rio de Janeiro (Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores dos países americanos): assumindo o compromisso de solidariedade hemisférica com os EUA, que haviam entrado na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941, o Brasil e a maioria dos países da América Latina rompem relações diplomáticas com o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
– A Alemanha reagiu afundando navios brasileiros (o primeiro foi o cargueiro Buarque): em 7 meses 19 navios foram afundados, matando 740 pessoas. No Brasil, aumentou a pressão interna pelo engajamento do país no conflito contra o Eixo.
– 1942, 4 julho. Passeata organizada pela UNE e apoiada por Oswaldo Aranha exige a entrada do Brasil na guerra. O germanófilo Filinto Muller, chefe da Polícia, que havia prometido proibir a manifestação, desistiu de reprimi-la e se demitiu.
– 1942, 15-17 agosto. Alemanha afunda 5 navios brasileiros
– 1942, 18 agosto. Grandes protestos nas capitais dos estados brasileiros exigem a declaração de guerra ao Eixo.
– 1942, 21 agosto. Vargas declara o estado de beligerância
– 1942, 25 agosto. O germanófilo general Góis Monteiro afasta-se do comando do Estado-Maior do Exército alegando motivo de saúde.
– 1942, 31 agosto. O Brasil declara guerra à Alemanha e Itália.
d) O Brasil na guerra (1942-1945)
O Brasil foi o único país da América Latina que enviou tropas para a Europa na Segunda Guerra Mundial, onde participou diretamente dos combates contra a Alemanha (o México enviou um grupo aéreo que lutou contra os japoneses no Pacífico). A decisão de organizar uma força expedicionária do exército (FEB ou Força Expedicionária Brasileira), apoiada por unidades aéreas (FAB ou Força Aérea Brasileira) partiu da insistência de militares brasileiros e do governo Vargas, movidos pelo nacionalismo e pela busca de prestígio internacional. O Brasil lutou na Itália em 1944-1945, com suas forças subordinadas ao V Exército Americano (parte do XV Grupo de Exército), concentrando suas ações contra as defesas alemãs da Linha Gótica. A marinha brasileira também atuou na guerra em missões de patrulha e combate anti-submarino no Atlântico. Principais momentos:
– 1943, agosto. O Estado Novo decide enviar combatentes à guerra contra a Alemanha; o plano era criar um Corpo de Exército com 3 divisões, mas só a 1 Divisão de Infantaria Expedicionária (I DIE, depois chamada de FEB), com mais de 25 mil homens, foi organizada. A estrutura e os equipamentos eram americanos. O comando da FEB ficou com o general Mascarenhas de Morais.
– 1943, dezembro. Formação do primeiro agrupamento de caças da FAB.
– 1944, julho. Início do envio das tropas brasileiras à Itália, que são integradas ao V Exército Americano comandado pelo general Mark Clark.
– 1944, setembro. Primeiros combates da FEB na Itália
– 1945, fevereiro. A FEB toma Monte Castello, controlado pelos alemães, depois de mais de 3 meses de combate. Foi a ação militar mais famosa do Brasil na guerra.
– 1945, fevereiro-abril. A FEB avança no norte da Itália.
– 1945, abril. Mais de 16 mil soldados alemães, junto com unidades fascistas italianas, se rendem a FEB próximo de Fornovo.
– 1945, maio. A FEB alcança Turim, onde se encontra com tropas francesas aliadas, e persegue o exército alemão em fuga nos Alpes. Nesse momento, a guerra termina.
Sunday, August 05, 2007
2 Ano- Crise do colonialismo português no Brasil
A crise do colonialismo português no Brasil (1760-1820)
1. Antecedentes
1.1 O Brasil em 1750: principal colônia de Portugal
Sociedade agrária e escravista. A população era de aproximadamente 1.500.000 (mais de 75% no meio rural ou em pequenos vilarejos), composta por 28% de brancos, 28% de mulatos e negros livres, 38% de escravos e 6% de índios sob autoridade portuguesa. Além dessa população colonial, possivelmente uns 250 mil índios continuavam livres da dominação de Portugal, vivendo nas partes inexploradas das regiões norte e centro-oeste.
Declínio da mineração aurífera. Em 1700-1760, quando a mineração foi a principal atividade mercantil do Brasil, ela havia estimulado a interiorização da colônia (fundação de cidades em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso), o crescimento populacional (maior imigração de portugueses e importação de escravos africanos), o desenvolvimento de diversas atividades econômicas voltadas para o mercado interno (agricultura, pecuária, artesanato) e a formação de novos grupos sociais dentro de uma sociedade escravista (camadas médias de pequenos comerciantes, profissionais liberais e artesãos). Com a decadência da mineração a economia colonial interiorana entrou em depressão, a sociedade aurífera empobreceu e a população de muitas das cidades das regiões mineradoras diminuiu.
Início do “renascimento agrícola”: a agricultura de exportação voltou a ser a principal atividade geradora de riquezas para a metrópole (algodão, arroz, açúcar, cacau, anil, café), mas dinamizou mais a região costeira do que a interiorana.
1.2 Portugal em 1750: potência decadente e fraca
Antigo Regime. Com uma população de aproximadamente 2.250.000 habitantes, Portugal tinha uma sociedade agrária senhorial sob uma monarquia absolutista (dinastia Bragança) e uma política econômica mercantilista.
Forte dependência externa, atraso econômico, parasitismo e pobreza. Portugal dependia em grande medida do Brasil (ouro, diamante e gêneros agrícolas tropicais por meio do monopólio comercial e da tributação colonial) e da Grã-Bretanha (proteção e importação de manufaturas). Na primeira metade do século XVIII, com a prosperidade da mineração colonial, o ouro e o diamante criaram uma expectativa ilusória de riqueza ilimitada, financiando o luxo da Corte e as importações de produtos britânicos. A pequena indústria manufatureira portuguesa sucumbiu diante da concorrência estrangeira, reforçada pelo Tratado de Methuen de 1703 com a Inglaterra (“o acordo dos panos e vinhos”), pelo qual Portugal eliminava as tarifas alfandegárias dos tecidos ingleses em troca da preferência inglesa ao vinho português. Com a decadência da mineração brasileira, a renda da metrópole diminuiu. Para agravar o quadro de crise, o contrabando na colônia desviava recursos de Portugal.
2. A reação de Portugal
A monarquia portuguesa tentou superar os problemas do atraso e da dependência de Portugal e das limitações na exploração colonial com uma série de reformas modernizadoras. As reformas foram feitas nos reinados de D. José I (1750-1777) e da sua filha D. Maria I (1777-1816), inspiradas, em parte, no racionalismo iluminista – o “despotismo esclarecido”. As reformas tinham o objetivo de fortalecer o Estado português (aperfeiçoando a máquina administrativa e as forças armadas), a economia metropolitana (estimulando a produção interna para reduzir as importações inglesas) e o sistema colonial (dinamizando a economia agro-exportadora e aumentando a arrecadação tributária). Tudo isso implicou no fortalecimento da Coroa, em uma maior centralização política e no crescimento da interferência e do controle da vida colonial pela metrópole. O resultado foi o aumento da exploração mercantilista da colônia e, consequentemente, da insatisfação dos colonos com o domínio português.
2.1 O reinado de D. José I (1750-1777)
O rei D. José I delegou a tarefa de definir e aplicar as reformas ao seu primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o famoso Marquês de Pombal, um déspota esclarecido. As principais medidas das Reformas Pombalinas (1750-1777) foram a expulsão dos jesuítas; a criação de um sistema de ensino laico; o protecionismo alfandegário para estimular as indústrias portuguesas; a extinção das capitanias hereditárias e o fortalecimento do vice-rei; a criação de companhias de comércio no Brasil (do Grão-Pará e Maranhão; de Pernambuco e Paraíba); mudança da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro (1763); o estímulo a produção de algodão no Maranhão; a ampliação do tráfico de escravos negros (mas tentou proibir a escravidão indígena); combate mais rigoroso ao contrabando; e o aumento dos impostos.
2.2 O reinado de D. Maria I (1777-1816)
Depois de assumir o trono, D. Maria I demitiu Pombal e adotou uma política conhecida como a “Viradeira”. Embora algumas das reformas pombalinas tenham sido anuladas (as companhias comerciais foram suprimidas), D. Maria I manteve a estratégia de aumentar o arrocho colonial sobre o Brasil. Sua medida mais famosa foi a Alvará de 1785, que proibiu fábricas no Brasil, com exceção da produção de tecidos grosseiros para os escravos.
3. Tentativas de rebelião no Brasil
A insatisfação com o aumento do arrocho colonial e a influência das idéias iluministas, da Revolução Americana e da Revolução Francesa desencadearam os primeiros movimentos pela defesa da independência do Brasil. Esses primeiros movimentos não passaram de conspirações que foram descobertas a tempo pelas autoridades portuguesas e rapidamente sufocadas. Apesar do seu fracasso, demonstraram que pelo menos uma parcela da sociedade colonial havia optado pela ação armada para romper os laços políticos com Portugal.
3.1 A Inconfidência Mineira (1789)
A Inconfidência (“deslealdade”) Mineira foi uma conspiração de membros da elite de Minas Gerais pela independência da colônia, o primeiro movimento desse tipo. Muitos mineiros ricos estavam arruinados por causa da crise econômica na região e do jugo colonial. Havia muito descontentamento com as proibições, monopólios e impostos, sobretudo com a perspectiva da cobrança da derrama (a taxa extra para alcançar a diferença que faltava no pagamento de 100 arrobas ou 1,5 toneladas de ouro que Minas deveria pagar anualmente). O autoritarismo e abusos do governador Cunha Menezes (1783-1788) agravou a situação. A chegada de um novo governador em 1788, o Visconde de Barbacena (Furtado de Mendonça), com a missão de aplicar a derrama aumentou ainda mais a tensão. Influenciados pelo iluminismo (as “idéias francesas”) e pela Revolução Americana, os inconfidentes propunham estabelecer uma república com a capital em São João Del Rei, fundar uma universidade em Vila Rica e estimular a criação de fábricas. A maioria defendia, porém a permanência da escravidão. Uma bandeira foi feita, com um triângulo representando a Santíssima Trindade e o lema Libertas quae sera tamen. A idéia era desencadear a rebelião quando a derrama fosse aplicada. Contudo, o plano foi mal preparado e descoberto com a traição de um dos conspiradores, Joaquim Silvério dos Reis, que delatou o movimento em março de 1789. Os inconfidentes foram presos (34 envolvidos) e uma devassa ordenada para apurar o crime. Depois de três anos de processo, o único executado (21 abril 1792) foi o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes – o único que assumiu toda a responsabilidade.
3.2 A Conjuração Baiana (1798)
A Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates foi o segundo movimento de independência do Brasil. Ao contrário da Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana foi uma conspiração de base mais popular envolvendo as camadas mais baixas de Salvador, como mulatos livres, negros alforriados e escravos, entre eles alguns alfaiates e soldados. A Conjuração foi um reflexo da decadência econômica de Salvador e do seu declínio político (a capital fora transferida para o Rio de Janeiro durante as Reformas Pombalinas) em meio à insatisfação generalizada com os impostos e abusos. Os conjurados foram influenciados pelo jacobinismo da Revolução Francesa e pelas notícias dos eventos da Revolução Haitiana e, por isso, suas propostas foram muito mais radicais do que as da Inconfidência Mineira: incluíam uma república democrática, a abolição da escravidão e a igualdade de todos diante da lei. Cartazes foram colados nos muros de Salvador em agosto de 1798 divulgando essas idéias revolucionárias. A polícia prendeu alguns suspeitos e acabou descobrindo todo o movimento. No final, 34 pessoas foram condenadas (14 mulatos livres, 10 escravos e 10 brancos), das quais 4 (mulatos e negros) foram enforcadas: Luis Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, João de Deus Nascimento e Manuel Faustino dos Santos.
1. Antecedentes
1.1 O Brasil em 1750: principal colônia de Portugal
Sociedade agrária e escravista. A população era de aproximadamente 1.500.000 (mais de 75% no meio rural ou em pequenos vilarejos), composta por 28% de brancos, 28% de mulatos e negros livres, 38% de escravos e 6% de índios sob autoridade portuguesa. Além dessa população colonial, possivelmente uns 250 mil índios continuavam livres da dominação de Portugal, vivendo nas partes inexploradas das regiões norte e centro-oeste.
Declínio da mineração aurífera. Em 1700-1760, quando a mineração foi a principal atividade mercantil do Brasil, ela havia estimulado a interiorização da colônia (fundação de cidades em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso), o crescimento populacional (maior imigração de portugueses e importação de escravos africanos), o desenvolvimento de diversas atividades econômicas voltadas para o mercado interno (agricultura, pecuária, artesanato) e a formação de novos grupos sociais dentro de uma sociedade escravista (camadas médias de pequenos comerciantes, profissionais liberais e artesãos). Com a decadência da mineração a economia colonial interiorana entrou em depressão, a sociedade aurífera empobreceu e a população de muitas das cidades das regiões mineradoras diminuiu.
Início do “renascimento agrícola”: a agricultura de exportação voltou a ser a principal atividade geradora de riquezas para a metrópole (algodão, arroz, açúcar, cacau, anil, café), mas dinamizou mais a região costeira do que a interiorana.
1.2 Portugal em 1750: potência decadente e fraca
Antigo Regime. Com uma população de aproximadamente 2.250.000 habitantes, Portugal tinha uma sociedade agrária senhorial sob uma monarquia absolutista (dinastia Bragança) e uma política econômica mercantilista.
Forte dependência externa, atraso econômico, parasitismo e pobreza. Portugal dependia em grande medida do Brasil (ouro, diamante e gêneros agrícolas tropicais por meio do monopólio comercial e da tributação colonial) e da Grã-Bretanha (proteção e importação de manufaturas). Na primeira metade do século XVIII, com a prosperidade da mineração colonial, o ouro e o diamante criaram uma expectativa ilusória de riqueza ilimitada, financiando o luxo da Corte e as importações de produtos britânicos. A pequena indústria manufatureira portuguesa sucumbiu diante da concorrência estrangeira, reforçada pelo Tratado de Methuen de 1703 com a Inglaterra (“o acordo dos panos e vinhos”), pelo qual Portugal eliminava as tarifas alfandegárias dos tecidos ingleses em troca da preferência inglesa ao vinho português. Com a decadência da mineração brasileira, a renda da metrópole diminuiu. Para agravar o quadro de crise, o contrabando na colônia desviava recursos de Portugal.
2. A reação de Portugal
A monarquia portuguesa tentou superar os problemas do atraso e da dependência de Portugal e das limitações na exploração colonial com uma série de reformas modernizadoras. As reformas foram feitas nos reinados de D. José I (1750-1777) e da sua filha D. Maria I (1777-1816), inspiradas, em parte, no racionalismo iluminista – o “despotismo esclarecido”. As reformas tinham o objetivo de fortalecer o Estado português (aperfeiçoando a máquina administrativa e as forças armadas), a economia metropolitana (estimulando a produção interna para reduzir as importações inglesas) e o sistema colonial (dinamizando a economia agro-exportadora e aumentando a arrecadação tributária). Tudo isso implicou no fortalecimento da Coroa, em uma maior centralização política e no crescimento da interferência e do controle da vida colonial pela metrópole. O resultado foi o aumento da exploração mercantilista da colônia e, consequentemente, da insatisfação dos colonos com o domínio português.
2.1 O reinado de D. José I (1750-1777)
O rei D. José I delegou a tarefa de definir e aplicar as reformas ao seu primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o famoso Marquês de Pombal, um déspota esclarecido. As principais medidas das Reformas Pombalinas (1750-1777) foram a expulsão dos jesuítas; a criação de um sistema de ensino laico; o protecionismo alfandegário para estimular as indústrias portuguesas; a extinção das capitanias hereditárias e o fortalecimento do vice-rei; a criação de companhias de comércio no Brasil (do Grão-Pará e Maranhão; de Pernambuco e Paraíba); mudança da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro (1763); o estímulo a produção de algodão no Maranhão; a ampliação do tráfico de escravos negros (mas tentou proibir a escravidão indígena); combate mais rigoroso ao contrabando; e o aumento dos impostos.
2.2 O reinado de D. Maria I (1777-1816)
Depois de assumir o trono, D. Maria I demitiu Pombal e adotou uma política conhecida como a “Viradeira”. Embora algumas das reformas pombalinas tenham sido anuladas (as companhias comerciais foram suprimidas), D. Maria I manteve a estratégia de aumentar o arrocho colonial sobre o Brasil. Sua medida mais famosa foi a Alvará de 1785, que proibiu fábricas no Brasil, com exceção da produção de tecidos grosseiros para os escravos.
3. Tentativas de rebelião no Brasil
A insatisfação com o aumento do arrocho colonial e a influência das idéias iluministas, da Revolução Americana e da Revolução Francesa desencadearam os primeiros movimentos pela defesa da independência do Brasil. Esses primeiros movimentos não passaram de conspirações que foram descobertas a tempo pelas autoridades portuguesas e rapidamente sufocadas. Apesar do seu fracasso, demonstraram que pelo menos uma parcela da sociedade colonial havia optado pela ação armada para romper os laços políticos com Portugal.
3.1 A Inconfidência Mineira (1789)
A Inconfidência (“deslealdade”) Mineira foi uma conspiração de membros da elite de Minas Gerais pela independência da colônia, o primeiro movimento desse tipo. Muitos mineiros ricos estavam arruinados por causa da crise econômica na região e do jugo colonial. Havia muito descontentamento com as proibições, monopólios e impostos, sobretudo com a perspectiva da cobrança da derrama (a taxa extra para alcançar a diferença que faltava no pagamento de 100 arrobas ou 1,5 toneladas de ouro que Minas deveria pagar anualmente). O autoritarismo e abusos do governador Cunha Menezes (1783-1788) agravou a situação. A chegada de um novo governador em 1788, o Visconde de Barbacena (Furtado de Mendonça), com a missão de aplicar a derrama aumentou ainda mais a tensão. Influenciados pelo iluminismo (as “idéias francesas”) e pela Revolução Americana, os inconfidentes propunham estabelecer uma república com a capital em São João Del Rei, fundar uma universidade em Vila Rica e estimular a criação de fábricas. A maioria defendia, porém a permanência da escravidão. Uma bandeira foi feita, com um triângulo representando a Santíssima Trindade e o lema Libertas quae sera tamen. A idéia era desencadear a rebelião quando a derrama fosse aplicada. Contudo, o plano foi mal preparado e descoberto com a traição de um dos conspiradores, Joaquim Silvério dos Reis, que delatou o movimento em março de 1789. Os inconfidentes foram presos (34 envolvidos) e uma devassa ordenada para apurar o crime. Depois de três anos de processo, o único executado (21 abril 1792) foi o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes – o único que assumiu toda a responsabilidade.
3.2 A Conjuração Baiana (1798)
A Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates foi o segundo movimento de independência do Brasil. Ao contrário da Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana foi uma conspiração de base mais popular envolvendo as camadas mais baixas de Salvador, como mulatos livres, negros alforriados e escravos, entre eles alguns alfaiates e soldados. A Conjuração foi um reflexo da decadência econômica de Salvador e do seu declínio político (a capital fora transferida para o Rio de Janeiro durante as Reformas Pombalinas) em meio à insatisfação generalizada com os impostos e abusos. Os conjurados foram influenciados pelo jacobinismo da Revolução Francesa e pelas notícias dos eventos da Revolução Haitiana e, por isso, suas propostas foram muito mais radicais do que as da Inconfidência Mineira: incluíam uma república democrática, a abolição da escravidão e a igualdade de todos diante da lei. Cartazes foram colados nos muros de Salvador em agosto de 1798 divulgando essas idéias revolucionárias. A polícia prendeu alguns suspeitos e acabou descobrindo todo o movimento. No final, 34 pessoas foram condenadas (14 mulatos livres, 10 escravos e 10 brancos), das quais 4 (mulatos e negros) foram enforcadas: Luis Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, João de Deus Nascimento e Manuel Faustino dos Santos.
Wednesday, August 01, 2007
3 série - A América Latina e a Guerra Fria (Parte I)
A América Latina na Era da Guerra Fria (1945-1991)
1. O contexto internacional em 1945-1991
Ordem internacional bipolar. Fim da tradicional multipolaridade na ordem internacional e estabelecimento da bipolaridade, com dois centros principais de poder global – EUA e URSS. A nova ordem internacional foi conseqüência dos efeitos geopolíticos e econômicos da Segunda Guerra Mundial: o declínio do poder militar global da Europa Ocidental e do Japão e a transformação dos EUA e da URSS em “superpotências” com um poder muito acima dos demais países.
Criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Organismo internacional que substituiu a antiga Liga das Nações. Sediada em Nova York, a ONU foi criada pela Conferência de São Francisco (abril-junho 1945) com a finalidade de defender a paz mundial, os direitos humanos, a igualdade de direitos para todos os povos e a melhoria do nível de vida em todo o mundo. Os principais níveis de deliberação da ONU são a Assembléia Geral reunindo todos os países membros, com decisões tomadas por maioria de 2/3, e o Conselho de Segurança composto por 15 membros, sendo 5 permanentes (EUA, URSS/Rússia, GB, França e China), com poder de veto, e 10 rotativos.
Expansão do socialismo no mundo. Isso ocorreu em dois sentidos. Primeiro, com a instalação de regimes socialistas na Europa Oriental, China, Coréia do Norte, Vietnã, Cuba e outras partes do Terceiro Mundo em decorrência da expansão militar soviética no final da Segunda Guerra Mundial (ocupação militar do leste europeu e imposição de governos comunistas na região) e de revoluções comunistas em áreas coloniais ou neocoloniais. Segundo, com o crescimento dos partidos comunistas e da influência das idéias marxistas nos países capitalistas, principalmente nos sindicatos e outras organizações de trabalhadores, entre os intelectuais e no movimento estudantil.
Divisão do mundo em dois grandes blocos com sistemas econômico-sociais distintos. O bloco capitalista (economia de mercado, propriedade privada, individualismo, predomínio da livre iniciativa) sob hegemonia dos EUA e o bloco socialista (economia estatizada e planificada, ausência de propriedade privada, coletivismo) sob hegemonia da URSS. Essas hegemonias não ficaram livres de contestação. No bloco capitalista, por exemplo, a França (presidente Charles de Gaulle) passou a questionar a liderança americana e defendeu a união da Europa e sua transformação em uma Terceira Força entre as aspirações hegemônicas das duas superpotências. No bloco socialista, a Iugoslávia (Tito) e, sobretudo, a China (Maozedong) também desafiaram a supremacia soviética.
A Guerra Fria. Foi o confronto político-estratégico e ideológico entre os EUA e a URSS pela supremacia mundial. A disputa caracterizou-se pela ausência de uma guerra direta entre as duas superpotências em razão do equilíbrio do poder nuclear e do temor da destruição mútua (“Terror nuclear”). Mas ambas entraram em confrontos indiretos por meio do envolvimento nos conflitos locais, intervenções militares nas respectivas áreas de influência e apoio militar aos países aliados em guerras regionais.
Descolonização da Ásia e da África. A independência das ex-colônias européias e japonesas, resultando na formação do Terceiro Mundo, que passou a incluir também a América Latina. Em alguns casos a independência se deu por meio de violentas guerras de libertação nacional como, por exemplo, contra a França na Indochina e na Argélia, e contra Portugal em Angola e Moçambique. Em geral, essas guerras ou revoluções nacionalistas eram lideradas por comunistas ou contaram com o seu apoio e o da URSS, o que transformou o Terceiro Mundo em um dos principais palcos da Guerra Fria. A soberania política dos novos países, entretanto, não eliminou a dependência econômica “neocolonial” (colonialismo econômico). Consequentemente, a luta pela superação do atraso, do subdesenvolvimento e da pobreza virou o maior desafio para os países do Terceiro Mundo. Nesse processo, eles buscaram o auxílio internacional da ONU, das superpotências e das ex-metrópoles, assim como a cooperação no próprio bloco terceiro-mundista. Foi nesse contexto que se deu a Conferência Afro-Asiática de Bandung, na Indonésia (abril 1955), uma reunião dos Estados asiáticos e africanos organizada pelo Egito, Indonésia, Índia, Paquistão, Birmânia e Sri Lanka que visou promover a cooperação econômica e cultural dos países do Terceiro Mundo e combater o colonialismo. A Conferência e o idealismo terceiro-mundista originaram o Movimento dos Países Não-Alinhados ou MNA (setembro 1961), uma organização internacional reunindo mais de cem países da Ásia, África, América Latina e Europa Oriental que não se consideraram alinhados com nenhuma das superpotências e afirmaram sua neutralidade na Guerra Fria (o que não aconteceu de fato). Os idealizadores do MNA foram os dirigentes nacionalistas ou socialistas da Índia (Nehru), Iugoslávia (Tito), Egito (Nasser), Indonésia (Sukarno) e Gana (Nkrumah). O MNA, que existe até hoje, busca garantir a soberania dos seus membros contra qualquer modalidade de dominação colonial ou de neocolonialismo. O Brasil não é membro formal do MNA, mas costuma enviar observadores para suas reuniões.
2. O contexto latino-americano em 1945-1991
Avanço da modernização capitalista. Na segunda metade do século XX, a América Latina passou por um processo mais acelerado de urbanização e de industrialização. No final do período, países como Brasil, México, Argentina e Chile tornaram-se de certa forma “modernos” (urbanos e industriais) apesar da persistência de bolsões de pobreza e de subdesenvolvimento econômico. A modernização modificou a composição tradicional da estrutura social. A classe média e o operariado cresceram proporcional e quantitativamente e a elite de industriais, comerciantes, banqueiros e prestadores de serviços superou em alguns países as elites fundiárias em termos de poder econômico e influência política.
Limites da modernização latino-americana. Apesar do avanço da modernização, nenhum país da América Latina conseguiu se tornar desenvolvido na segunda metade do século XX. Antigos e novos problemas impediram a plena modernização da região, entre eles: persistência de uma grande concentração de renda, desigualdade social e pobreza (sobretudo no meio rural e nas periferias das cidades); mercado interno limitado pelo baixo poder aquisitivo de uma expressiva parcela da população; ensino público deficiente; alto índice de corrupção, de criminalidade e de impunidade; sistema tributário distorcido; precariedade dos serviços públicos; forte dependência da exportação de matérias-primas e da importação de capital e tecnologia; instabilidade política e fragilidade dos regimes democráticos (partidos políticos e instituições fracas e pouco representativas; constantes intervenções militares na política por meio de golpes de Estado). O resultado de tudo isso foi uma grande pressão por justiça social, distribuição de renda, igualdade e reformas radicais (como a reforma agrária), partindo principalmente de intelectuais, sindicatos, setores progressistas da Igreja e organizações estudantis de tendências populistas e esquerdistas que, em um quadro de crescente influência do marxismo, buscavam mobilizar os trabalhadores em “movimentos sociais” contra a ordem vigente. Para esses grupos políticos a única maneira de transformar a sociedade em benefício dos pobres era democratizar o Estado (que para os mais extremistas pressupunha a instalação de uma ditadura revolucionária), aumentar sua capacidade de interferir na economia em moldes coletivistas (parcial ou totalmente socialista) e combater o capital estrangeiro, sobretudo o americano (antiamericanismo, antiimperialismo).
Democracias frágeis, instabilidade política e governos militares. Os sistemas políticos da América Latina não ficaram imunes às mudanças causadas pela intensificação da urbanização e da industrialização em um quadro ainda muito marcado pela pobreza e exclusão social. Nos países onde a modernização foi mais intensa, a estrutura republicana oligárquica tinha entrado em crise nas décadas de 1920 e 1930 sendo superada, primeiro, por regimes autoritários nacionalistas que tentaram conciliar os diferentes interesses dos setores agrários e industriais. Depois da Segunda Guerra Mundial, o autoritarismo foi substituído por democracias que continuaram buscando a composição entre os interesses das elites, as expectativas das classes médias e as reivindicações das massas trabalhadoras em um contexto de liberdade política. De uma maneira geral, essa conciliação democrática não foi possível, sobretudo em situações de intensa inflação, quando ocorria uma queda no poder aquisitivo. O populismo, cujo apogeu foi em 1945-1965, tentou fazer isso mobilizando os trabalhadores e os sindicatos com o nacionalismo econômico e o trabalhismo, mas fracassou diante do crescimento de um movimento operário cada vez mais exigente e difícil de ser controlado, e da resistência das camadas dominantes, aliadas ao capital estrangeiro, a mudanças mais profundas no capitalismo latino-americano. Com efeito, em um ambiente de intensa rivalidade ideológica que refletia a Guerra Fria, o operariado tendia a se aproximar dos trabalhadores rurais em movimentos de massas que reivindicavam reformas sociais e econômicas, chocando-se com os interesses dos grupos empresariais e das oligarquias agrárias. As elites urbanas e rurais tendiam, assim, a conciliar seus interesses (política industrial, defesa do capital contra os sindicatos e modernização da infra-estrutura com preservação da estrutura agrária e o incentivo à exportação de gêneros agrícolas) diante das pressões populares por mudanças mais radicais (ampliação dos direitos sociais, fortalecimento dos sindicatos, reforma agrária), o que explica em grande medida o conservadorismo dessas elites e os limites que impunham aos rumos das democracias latino-americanas. Assim, a ascensão desses movimentos de massas populistas ou de tendência socialista (os comunistas de fato estavam infiltrados ou apoiaram esses movimentos, em geral sob orientação da URSS), e a resistência das elites econômicas às reformas sociais criaram uma forte instabilidade política nas democracias da América Latina pós-1945 e resultaram em freqüentes golpes de Estado contra governos considerados radicais ou por demais fracos para conter o radicalismo popular. A derrubada desses governos, entretanto, não assegurava o retorno da normalidade constitucional devido à incapacidade das elites econômicas de conter as pressões dos trabalhadores em um quadro de liberdade democrática. O resultado, frequentemente, eram impasses políticos que só puderam ser solucionados com a instalação de governos militares antipopulistas e anticomunistas de “segurança nacional” nas décadas de 1960 e 1970, capazes de reprimir os movimentos de massas, eliminar a “subversão comunista” e manter a ordem social sem, contudo, abandonar as políticas de modernização econômica. Esses regimes militares contaram também com o importante apoio do capital estrangeiro, interessado na estabilidade política e na proteção dos seus negócios, e do governo dos EUA, empenhado em uma “cruzada anticomunista” e na afirmação de sua hegemonia sobre a América Latina.
O debate do caminho da modernização capitalista. Os intelectuais, as elites econômicas e a classe política ficaram divididas quanto ao melhor caminho da modernização capitalista da América Latina e da superação do subdesenvolvimento. De uma maneira geral, foram formuladas duas propostas bem diferentes. A primeira foi a do liberalismo tradicional, que pregava a modernização evolutiva e natural via a livre-iniciativa, redução dos gastos públicos e dos impostos, abertura para o capital estrangeiro e especialização na produção de matérias-primas para o mercado externo. Essa visão perdeu influência no período e passou a ser defendida por uma minoria de intelectuais que passaram a ser chamados de “neoliberais”. A segunda foi a do nacional-desenvolvimentismo, favorável ao intervencionismo governamental no capitalismo visando o desenvolvimento da infra-estrutura, a industrialização com substituição de importações (enfatizando o mercado interno) e a estatização dos setores estratégicos da economia (energia, comunicações, transporte). Essa visão predominou no período e foi adotada, em escala variada e sob diversas modalidades, por regimes populistas, não-populistas, democratas e autoritários. O nacional-desenvolvimentismo resultou, ao longo do período, no crescimento do aparelho de Estado, da regulamentação econômica, do protecionismo, do funcionalismo, da burocracia, dos gastos públicos e da carga tributária. A insuficiência de recursos nacionais, em grande parte por causa das limitações e distorções do sistema fiscal, forçou o Estado a buscar financiamento por meio de empréstimos, principalmente no exterior. A conseqüência foi o crescimento da dívida pública em um quadro de forte desequilíbrio das contas governamentais e de inflação elevada. Com o nacional-desenvolvimentismo, o capital estrangeiro sofreu restrições em alguns setores, mas ampliou sua atuação em outros (empréstimos, investimentos diretos de multinacionais). Na verdade, a política nacional-desenvolvimentista implicou na formação de três setores econômicos (o “tripé econômico”): o estatal, o privado nacional e o multinacional. Cada um desses setores foi enfatizado de forma diferente dependendo do país, da época e do governante.
3. Os EUA e a América Latina em 1945-1991
A Guerra Fria alterou a lógica das relações interamericanas, elevando a proteção da “segurança nacional” ao topo da agenda da política externa dos EUA e transformando a América Latina (e outras áreas do Terceiro Mundo) simultaneamente no campo de batalha e no prêmio do conflito entre capitalismo e comunismo, Ocidente e Leste, EUA e URSS. Em resposta aos desafios soviéticos, os Estados Unidos buscaram estender e consolidar sua supremacia no Hemisfério Ocidental. Lançando uma cruzada anticomunista, os Estados Unidos institucionalizaram as alianças políticas e militares com as nações da região; ofereceram colaborar com os regimes autoritários contanto que fossem anticomunistas; encorajaram (ou compeliram) governos amigos a esmagar os movimentos esquerdistas de trabalhadores e declarar ilegal os partidos comunistas; e orquestraram a derrubada militar de governos eleitos sob o argumento de que eram “brandos” com o comunismo. O temor de uma “ameaça soviética” nas Américas foi grandemente exagerado, mas ainda assim ele teve implicações cruciais para a política dos EUA. Por volta de meados da década de 1950, Washington lançara as linhas políticas que continuariam pelos anos de 1980.
Peter Smith. Talons of the Eagle: Dynamics of U.S.-Latin American Relations (1996, Nova York, Oxford)
3.1 O governo Harry S. Truman (1945-1953)
Aspectos gerais. Harry S. Truman (1884-1972), do Partido Democrata, era vice-presidente dos EUA quando, em abril de 1945, assumiu o governo americano com a morte de Franklin Roosevelt. Foi na presidência Truman que ocorreu o final da Segunda Guerra Mundial (foi dele a decisão de bombardear o Japão com armas nucleares), a fundação da ONU, a imposição do comunismo na Europa Oriental pela URSS, o início da Guerra Fria, a divisão da Alemanha em um Estado capitalista e outro socialista, o Plano Marshall de reconstrução da Europa Ocidental, a crise do bloqueio de Berlim pelos soviéticos, a criação da OTAN e da CIA, a vitória da Revolução Comunista Chinesa e a Guerra da Coréia. Truman reagiu contra a expansão soviética e socialista com a política de contenção do comunismo (Doutrina Truman), aplicada principalmente na Europa e Ásia. No próprio EUA o senador republicano Joseph McCarthy desencadeou em 1950-1954 uma campanha de perseguição a comunistas ou supostos comunistas no governo americano e em outros setores do país (o macarthismo). Na América Latina, Truman buscou assegurar a hegemonia americana e combater a expansão comunista por meio do ideal da solidariedade hemisférica e segurança coletiva, em uma estrutura internacional separada da ONU.
Apoio americano a redemocratização dos regimes autoritários nacionalistas da América Latina (1945-1946). No contexto do imediato pós-Segunda Guerra Mundial, marcado pela derrota do nazi-fascismo, pela expectativa de expansão do liberalismo e pela necessidade de aumentar as exportações americanas, o governo Truman apoiou, em um primeiro momento, a onda de democratização da América Latina. Os regimes, movimentos e líderes autoritários nacionalistas ou populistas latino-americanos passaram a ser vistos como “semifascistas”, com políticas econômicas protecionistas e estatizantes que restringiam a expansão do comércio e os investimentos americanos na região. No Brasil, por exemplo, os EUA afastaram-se de Vargas (um aliado americano na guerra) e ficaram contra a ditadura do Estado Novo. Do mesmo modo na Argentina, os americanos fizeram oposição à candidatura presidencial do coronel Perón, membro do governo militar. Simultaneamente, a aliança antifascista EUA-URSS, vitoriosa na guerra, foi rompida em razão das divergências político-ideológicas e das desconfianças mútuas dos americanos e soviéticos, sobretudo na questão sobre a nova ordem internacional européia no pós-guerra. Foi nessa conjuntura que a Guerra Fria começou a ganhar corpo. Por sua vez, no processo de democratização latino-americana, o clima de liberdade política e de expressão favoreceu o crescimento do movimento comunista e das correntes “progressistas” (o próprio populismo, grupos socialistas) que mobilizavam as massas em prol de reformas sociais, assustando as elites tradicionais, os militares e os EUA.
O início da política americana de contenção do comunismo (1946-1948). Com a eclosão da Guerra Fria, o governo Trumam começou a considerar o combate ao comunismo na América Latina mais prioritário do que a democratização da região e buscou estabelecer uma organização de segurança regional, além de pregar a restrição das atividades dos partidos comunistas latino-americanos. Com efeito, em 1947-1948 os partidos comunistas foram proibidos em vários países da América Latina (no Brasil em maio de 1947). Entre os principais momentos da escalada da contenção do comunismo e da afirmação da liderança dos EUA na América Latina podemos destacar:
■ 1947, março – Doutrina Truman: em um discurso no Congresso americano, Truman afirmou que os EUA ajudariam qualquer país ameaçado pelo comunismo.
■1947, julho – Lei de Segurança Nacional dos EUA: reorganizou as Forças Armadas, a política externa e a comunidade de informação americanas. A LSN criou a famosa CIA (Central Intelligence Agency ou Agência Central de Inteligência), encarregada de obter dados sobre governos, organizações e pessoas estrangeiras, propagar informações e contra-informações favoráveis aos EUA e organizar operações secretas no exterior. A CIA foi um dos principais instrumentos da estratégia americana de combater a expansão do comunismo no mundo.
■1947, setembro – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) ou Pacto do Rio: Assinado no Rio de Janeiro, foi o tratado de defesa mútua entre os EUA e os países da América Latina, baseado no princípio de que um ataque contra um dos seus signatários seria considerado um ataque contra todos. O TIAR foi beneficiado pela aprovação dos artigos 51-53 da Carta da ONU, que permitia que organizações defensivas regionais agissem independentemente das Nações Unidas em situações de emergência.
■1948, abril – Organização dos Estados Americanos (OEA): criada na Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos, em Bogotá, Colômbia. Com sede em Washington, nos EUA, a OEA tem o objetivo de promover a solidariedade, cooperação, soberania, paz e a segurança dos países americanos. Com o TIAR e a OEA, os EUA buscaram assegurar a sua hegemonia na América Latina baseada em uma estrutura regional de consulta e segurança coletivas, independente da ONU. O princípio de intervenção militar para garantir a paz e a segurança no Hemisfério Ocidental foi mantido, mas deixou de ser considerado, teoricamente, um direito unilateral dos EUA e passou a ser visto como uma ação multilateral dos países americanos sob a liderança de Washington.
Retorno do autoritarismo (1948-1953). Diante da ascensão dos movimentos de massas, as elites dominantes em vários países da América Latina apoiaram a derrubada dos governos democráticos e a instalação de ditaduras para “restaurar a ordem”. O governo Truman reconheceu prontamente os novos regimes autoritários anticomunistas. Em 1954, a democracia só sobrevivia, ainda assim em caráter precário, no Brasil, Chile, Uruguai e Costa Rica. Paralelamente, os EUA ampliavam seus laços de cooperação com os militares latino-americanos, sobretudo por meio de treinamentos em instalações americanas, como a famosa Escola de Instrução do Fort Gulick, no Panamá (renomeada em 1963 “Escola das Américas”).
1. O contexto internacional em 1945-1991
Ordem internacional bipolar. Fim da tradicional multipolaridade na ordem internacional e estabelecimento da bipolaridade, com dois centros principais de poder global – EUA e URSS. A nova ordem internacional foi conseqüência dos efeitos geopolíticos e econômicos da Segunda Guerra Mundial: o declínio do poder militar global da Europa Ocidental e do Japão e a transformação dos EUA e da URSS em “superpotências” com um poder muito acima dos demais países.
Criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Organismo internacional que substituiu a antiga Liga das Nações. Sediada em Nova York, a ONU foi criada pela Conferência de São Francisco (abril-junho 1945) com a finalidade de defender a paz mundial, os direitos humanos, a igualdade de direitos para todos os povos e a melhoria do nível de vida em todo o mundo. Os principais níveis de deliberação da ONU são a Assembléia Geral reunindo todos os países membros, com decisões tomadas por maioria de 2/3, e o Conselho de Segurança composto por 15 membros, sendo 5 permanentes (EUA, URSS/Rússia, GB, França e China), com poder de veto, e 10 rotativos.
Expansão do socialismo no mundo. Isso ocorreu em dois sentidos. Primeiro, com a instalação de regimes socialistas na Europa Oriental, China, Coréia do Norte, Vietnã, Cuba e outras partes do Terceiro Mundo em decorrência da expansão militar soviética no final da Segunda Guerra Mundial (ocupação militar do leste europeu e imposição de governos comunistas na região) e de revoluções comunistas em áreas coloniais ou neocoloniais. Segundo, com o crescimento dos partidos comunistas e da influência das idéias marxistas nos países capitalistas, principalmente nos sindicatos e outras organizações de trabalhadores, entre os intelectuais e no movimento estudantil.
Divisão do mundo em dois grandes blocos com sistemas econômico-sociais distintos. O bloco capitalista (economia de mercado, propriedade privada, individualismo, predomínio da livre iniciativa) sob hegemonia dos EUA e o bloco socialista (economia estatizada e planificada, ausência de propriedade privada, coletivismo) sob hegemonia da URSS. Essas hegemonias não ficaram livres de contestação. No bloco capitalista, por exemplo, a França (presidente Charles de Gaulle) passou a questionar a liderança americana e defendeu a união da Europa e sua transformação em uma Terceira Força entre as aspirações hegemônicas das duas superpotências. No bloco socialista, a Iugoslávia (Tito) e, sobretudo, a China (Maozedong) também desafiaram a supremacia soviética.
A Guerra Fria. Foi o confronto político-estratégico e ideológico entre os EUA e a URSS pela supremacia mundial. A disputa caracterizou-se pela ausência de uma guerra direta entre as duas superpotências em razão do equilíbrio do poder nuclear e do temor da destruição mútua (“Terror nuclear”). Mas ambas entraram em confrontos indiretos por meio do envolvimento nos conflitos locais, intervenções militares nas respectivas áreas de influência e apoio militar aos países aliados em guerras regionais.
Descolonização da Ásia e da África. A independência das ex-colônias européias e japonesas, resultando na formação do Terceiro Mundo, que passou a incluir também a América Latina. Em alguns casos a independência se deu por meio de violentas guerras de libertação nacional como, por exemplo, contra a França na Indochina e na Argélia, e contra Portugal em Angola e Moçambique. Em geral, essas guerras ou revoluções nacionalistas eram lideradas por comunistas ou contaram com o seu apoio e o da URSS, o que transformou o Terceiro Mundo em um dos principais palcos da Guerra Fria. A soberania política dos novos países, entretanto, não eliminou a dependência econômica “neocolonial” (colonialismo econômico). Consequentemente, a luta pela superação do atraso, do subdesenvolvimento e da pobreza virou o maior desafio para os países do Terceiro Mundo. Nesse processo, eles buscaram o auxílio internacional da ONU, das superpotências e das ex-metrópoles, assim como a cooperação no próprio bloco terceiro-mundista. Foi nesse contexto que se deu a Conferência Afro-Asiática de Bandung, na Indonésia (abril 1955), uma reunião dos Estados asiáticos e africanos organizada pelo Egito, Indonésia, Índia, Paquistão, Birmânia e Sri Lanka que visou promover a cooperação econômica e cultural dos países do Terceiro Mundo e combater o colonialismo. A Conferência e o idealismo terceiro-mundista originaram o Movimento dos Países Não-Alinhados ou MNA (setembro 1961), uma organização internacional reunindo mais de cem países da Ásia, África, América Latina e Europa Oriental que não se consideraram alinhados com nenhuma das superpotências e afirmaram sua neutralidade na Guerra Fria (o que não aconteceu de fato). Os idealizadores do MNA foram os dirigentes nacionalistas ou socialistas da Índia (Nehru), Iugoslávia (Tito), Egito (Nasser), Indonésia (Sukarno) e Gana (Nkrumah). O MNA, que existe até hoje, busca garantir a soberania dos seus membros contra qualquer modalidade de dominação colonial ou de neocolonialismo. O Brasil não é membro formal do MNA, mas costuma enviar observadores para suas reuniões.
2. O contexto latino-americano em 1945-1991
Avanço da modernização capitalista. Na segunda metade do século XX, a América Latina passou por um processo mais acelerado de urbanização e de industrialização. No final do período, países como Brasil, México, Argentina e Chile tornaram-se de certa forma “modernos” (urbanos e industriais) apesar da persistência de bolsões de pobreza e de subdesenvolvimento econômico. A modernização modificou a composição tradicional da estrutura social. A classe média e o operariado cresceram proporcional e quantitativamente e a elite de industriais, comerciantes, banqueiros e prestadores de serviços superou em alguns países as elites fundiárias em termos de poder econômico e influência política.
Limites da modernização latino-americana. Apesar do avanço da modernização, nenhum país da América Latina conseguiu se tornar desenvolvido na segunda metade do século XX. Antigos e novos problemas impediram a plena modernização da região, entre eles: persistência de uma grande concentração de renda, desigualdade social e pobreza (sobretudo no meio rural e nas periferias das cidades); mercado interno limitado pelo baixo poder aquisitivo de uma expressiva parcela da população; ensino público deficiente; alto índice de corrupção, de criminalidade e de impunidade; sistema tributário distorcido; precariedade dos serviços públicos; forte dependência da exportação de matérias-primas e da importação de capital e tecnologia; instabilidade política e fragilidade dos regimes democráticos (partidos políticos e instituições fracas e pouco representativas; constantes intervenções militares na política por meio de golpes de Estado). O resultado de tudo isso foi uma grande pressão por justiça social, distribuição de renda, igualdade e reformas radicais (como a reforma agrária), partindo principalmente de intelectuais, sindicatos, setores progressistas da Igreja e organizações estudantis de tendências populistas e esquerdistas que, em um quadro de crescente influência do marxismo, buscavam mobilizar os trabalhadores em “movimentos sociais” contra a ordem vigente. Para esses grupos políticos a única maneira de transformar a sociedade em benefício dos pobres era democratizar o Estado (que para os mais extremistas pressupunha a instalação de uma ditadura revolucionária), aumentar sua capacidade de interferir na economia em moldes coletivistas (parcial ou totalmente socialista) e combater o capital estrangeiro, sobretudo o americano (antiamericanismo, antiimperialismo).
Democracias frágeis, instabilidade política e governos militares. Os sistemas políticos da América Latina não ficaram imunes às mudanças causadas pela intensificação da urbanização e da industrialização em um quadro ainda muito marcado pela pobreza e exclusão social. Nos países onde a modernização foi mais intensa, a estrutura republicana oligárquica tinha entrado em crise nas décadas de 1920 e 1930 sendo superada, primeiro, por regimes autoritários nacionalistas que tentaram conciliar os diferentes interesses dos setores agrários e industriais. Depois da Segunda Guerra Mundial, o autoritarismo foi substituído por democracias que continuaram buscando a composição entre os interesses das elites, as expectativas das classes médias e as reivindicações das massas trabalhadoras em um contexto de liberdade política. De uma maneira geral, essa conciliação democrática não foi possível, sobretudo em situações de intensa inflação, quando ocorria uma queda no poder aquisitivo. O populismo, cujo apogeu foi em 1945-1965, tentou fazer isso mobilizando os trabalhadores e os sindicatos com o nacionalismo econômico e o trabalhismo, mas fracassou diante do crescimento de um movimento operário cada vez mais exigente e difícil de ser controlado, e da resistência das camadas dominantes, aliadas ao capital estrangeiro, a mudanças mais profundas no capitalismo latino-americano. Com efeito, em um ambiente de intensa rivalidade ideológica que refletia a Guerra Fria, o operariado tendia a se aproximar dos trabalhadores rurais em movimentos de massas que reivindicavam reformas sociais e econômicas, chocando-se com os interesses dos grupos empresariais e das oligarquias agrárias. As elites urbanas e rurais tendiam, assim, a conciliar seus interesses (política industrial, defesa do capital contra os sindicatos e modernização da infra-estrutura com preservação da estrutura agrária e o incentivo à exportação de gêneros agrícolas) diante das pressões populares por mudanças mais radicais (ampliação dos direitos sociais, fortalecimento dos sindicatos, reforma agrária), o que explica em grande medida o conservadorismo dessas elites e os limites que impunham aos rumos das democracias latino-americanas. Assim, a ascensão desses movimentos de massas populistas ou de tendência socialista (os comunistas de fato estavam infiltrados ou apoiaram esses movimentos, em geral sob orientação da URSS), e a resistência das elites econômicas às reformas sociais criaram uma forte instabilidade política nas democracias da América Latina pós-1945 e resultaram em freqüentes golpes de Estado contra governos considerados radicais ou por demais fracos para conter o radicalismo popular. A derrubada desses governos, entretanto, não assegurava o retorno da normalidade constitucional devido à incapacidade das elites econômicas de conter as pressões dos trabalhadores em um quadro de liberdade democrática. O resultado, frequentemente, eram impasses políticos que só puderam ser solucionados com a instalação de governos militares antipopulistas e anticomunistas de “segurança nacional” nas décadas de 1960 e 1970, capazes de reprimir os movimentos de massas, eliminar a “subversão comunista” e manter a ordem social sem, contudo, abandonar as políticas de modernização econômica. Esses regimes militares contaram também com o importante apoio do capital estrangeiro, interessado na estabilidade política e na proteção dos seus negócios, e do governo dos EUA, empenhado em uma “cruzada anticomunista” e na afirmação de sua hegemonia sobre a América Latina.
O debate do caminho da modernização capitalista. Os intelectuais, as elites econômicas e a classe política ficaram divididas quanto ao melhor caminho da modernização capitalista da América Latina e da superação do subdesenvolvimento. De uma maneira geral, foram formuladas duas propostas bem diferentes. A primeira foi a do liberalismo tradicional, que pregava a modernização evolutiva e natural via a livre-iniciativa, redução dos gastos públicos e dos impostos, abertura para o capital estrangeiro e especialização na produção de matérias-primas para o mercado externo. Essa visão perdeu influência no período e passou a ser defendida por uma minoria de intelectuais que passaram a ser chamados de “neoliberais”. A segunda foi a do nacional-desenvolvimentismo, favorável ao intervencionismo governamental no capitalismo visando o desenvolvimento da infra-estrutura, a industrialização com substituição de importações (enfatizando o mercado interno) e a estatização dos setores estratégicos da economia (energia, comunicações, transporte). Essa visão predominou no período e foi adotada, em escala variada e sob diversas modalidades, por regimes populistas, não-populistas, democratas e autoritários. O nacional-desenvolvimentismo resultou, ao longo do período, no crescimento do aparelho de Estado, da regulamentação econômica, do protecionismo, do funcionalismo, da burocracia, dos gastos públicos e da carga tributária. A insuficiência de recursos nacionais, em grande parte por causa das limitações e distorções do sistema fiscal, forçou o Estado a buscar financiamento por meio de empréstimos, principalmente no exterior. A conseqüência foi o crescimento da dívida pública em um quadro de forte desequilíbrio das contas governamentais e de inflação elevada. Com o nacional-desenvolvimentismo, o capital estrangeiro sofreu restrições em alguns setores, mas ampliou sua atuação em outros (empréstimos, investimentos diretos de multinacionais). Na verdade, a política nacional-desenvolvimentista implicou na formação de três setores econômicos (o “tripé econômico”): o estatal, o privado nacional e o multinacional. Cada um desses setores foi enfatizado de forma diferente dependendo do país, da época e do governante.
3. Os EUA e a América Latina em 1945-1991
A Guerra Fria alterou a lógica das relações interamericanas, elevando a proteção da “segurança nacional” ao topo da agenda da política externa dos EUA e transformando a América Latina (e outras áreas do Terceiro Mundo) simultaneamente no campo de batalha e no prêmio do conflito entre capitalismo e comunismo, Ocidente e Leste, EUA e URSS. Em resposta aos desafios soviéticos, os Estados Unidos buscaram estender e consolidar sua supremacia no Hemisfério Ocidental. Lançando uma cruzada anticomunista, os Estados Unidos institucionalizaram as alianças políticas e militares com as nações da região; ofereceram colaborar com os regimes autoritários contanto que fossem anticomunistas; encorajaram (ou compeliram) governos amigos a esmagar os movimentos esquerdistas de trabalhadores e declarar ilegal os partidos comunistas; e orquestraram a derrubada militar de governos eleitos sob o argumento de que eram “brandos” com o comunismo. O temor de uma “ameaça soviética” nas Américas foi grandemente exagerado, mas ainda assim ele teve implicações cruciais para a política dos EUA. Por volta de meados da década de 1950, Washington lançara as linhas políticas que continuariam pelos anos de 1980.
Peter Smith. Talons of the Eagle: Dynamics of U.S.-Latin American Relations (1996, Nova York, Oxford)
3.1 O governo Harry S. Truman (1945-1953)
Aspectos gerais. Harry S. Truman (1884-1972), do Partido Democrata, era vice-presidente dos EUA quando, em abril de 1945, assumiu o governo americano com a morte de Franklin Roosevelt. Foi na presidência Truman que ocorreu o final da Segunda Guerra Mundial (foi dele a decisão de bombardear o Japão com armas nucleares), a fundação da ONU, a imposição do comunismo na Europa Oriental pela URSS, o início da Guerra Fria, a divisão da Alemanha em um Estado capitalista e outro socialista, o Plano Marshall de reconstrução da Europa Ocidental, a crise do bloqueio de Berlim pelos soviéticos, a criação da OTAN e da CIA, a vitória da Revolução Comunista Chinesa e a Guerra da Coréia. Truman reagiu contra a expansão soviética e socialista com a política de contenção do comunismo (Doutrina Truman), aplicada principalmente na Europa e Ásia. No próprio EUA o senador republicano Joseph McCarthy desencadeou em 1950-1954 uma campanha de perseguição a comunistas ou supostos comunistas no governo americano e em outros setores do país (o macarthismo). Na América Latina, Truman buscou assegurar a hegemonia americana e combater a expansão comunista por meio do ideal da solidariedade hemisférica e segurança coletiva, em uma estrutura internacional separada da ONU.
Apoio americano a redemocratização dos regimes autoritários nacionalistas da América Latina (1945-1946). No contexto do imediato pós-Segunda Guerra Mundial, marcado pela derrota do nazi-fascismo, pela expectativa de expansão do liberalismo e pela necessidade de aumentar as exportações americanas, o governo Truman apoiou, em um primeiro momento, a onda de democratização da América Latina. Os regimes, movimentos e líderes autoritários nacionalistas ou populistas latino-americanos passaram a ser vistos como “semifascistas”, com políticas econômicas protecionistas e estatizantes que restringiam a expansão do comércio e os investimentos americanos na região. No Brasil, por exemplo, os EUA afastaram-se de Vargas (um aliado americano na guerra) e ficaram contra a ditadura do Estado Novo. Do mesmo modo na Argentina, os americanos fizeram oposição à candidatura presidencial do coronel Perón, membro do governo militar. Simultaneamente, a aliança antifascista EUA-URSS, vitoriosa na guerra, foi rompida em razão das divergências político-ideológicas e das desconfianças mútuas dos americanos e soviéticos, sobretudo na questão sobre a nova ordem internacional européia no pós-guerra. Foi nessa conjuntura que a Guerra Fria começou a ganhar corpo. Por sua vez, no processo de democratização latino-americana, o clima de liberdade política e de expressão favoreceu o crescimento do movimento comunista e das correntes “progressistas” (o próprio populismo, grupos socialistas) que mobilizavam as massas em prol de reformas sociais, assustando as elites tradicionais, os militares e os EUA.
O início da política americana de contenção do comunismo (1946-1948). Com a eclosão da Guerra Fria, o governo Trumam começou a considerar o combate ao comunismo na América Latina mais prioritário do que a democratização da região e buscou estabelecer uma organização de segurança regional, além de pregar a restrição das atividades dos partidos comunistas latino-americanos. Com efeito, em 1947-1948 os partidos comunistas foram proibidos em vários países da América Latina (no Brasil em maio de 1947). Entre os principais momentos da escalada da contenção do comunismo e da afirmação da liderança dos EUA na América Latina podemos destacar:
■ 1947, março – Doutrina Truman: em um discurso no Congresso americano, Truman afirmou que os EUA ajudariam qualquer país ameaçado pelo comunismo.
■1947, julho – Lei de Segurança Nacional dos EUA: reorganizou as Forças Armadas, a política externa e a comunidade de informação americanas. A LSN criou a famosa CIA (Central Intelligence Agency ou Agência Central de Inteligência), encarregada de obter dados sobre governos, organizações e pessoas estrangeiras, propagar informações e contra-informações favoráveis aos EUA e organizar operações secretas no exterior. A CIA foi um dos principais instrumentos da estratégia americana de combater a expansão do comunismo no mundo.
■1947, setembro – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) ou Pacto do Rio: Assinado no Rio de Janeiro, foi o tratado de defesa mútua entre os EUA e os países da América Latina, baseado no princípio de que um ataque contra um dos seus signatários seria considerado um ataque contra todos. O TIAR foi beneficiado pela aprovação dos artigos 51-53 da Carta da ONU, que permitia que organizações defensivas regionais agissem independentemente das Nações Unidas em situações de emergência.
■1948, abril – Organização dos Estados Americanos (OEA): criada na Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos, em Bogotá, Colômbia. Com sede em Washington, nos EUA, a OEA tem o objetivo de promover a solidariedade, cooperação, soberania, paz e a segurança dos países americanos. Com o TIAR e a OEA, os EUA buscaram assegurar a sua hegemonia na América Latina baseada em uma estrutura regional de consulta e segurança coletivas, independente da ONU. O princípio de intervenção militar para garantir a paz e a segurança no Hemisfério Ocidental foi mantido, mas deixou de ser considerado, teoricamente, um direito unilateral dos EUA e passou a ser visto como uma ação multilateral dos países americanos sob a liderança de Washington.
Retorno do autoritarismo (1948-1953). Diante da ascensão dos movimentos de massas, as elites dominantes em vários países da América Latina apoiaram a derrubada dos governos democráticos e a instalação de ditaduras para “restaurar a ordem”. O governo Truman reconheceu prontamente os novos regimes autoritários anticomunistas. Em 1954, a democracia só sobrevivia, ainda assim em caráter precário, no Brasil, Chile, Uruguai e Costa Rica. Paralelamente, os EUA ampliavam seus laços de cooperação com os militares latino-americanos, sobretudo por meio de treinamentos em instalações americanas, como a famosa Escola de Instrução do Fort Gulick, no Panamá (renomeada em 1963 “Escola das Américas”).
Friday, June 22, 2007
3 Série - Nazismo e Comunismo
Interessante o texto "A destruição da política pelo nazismo e comunismo" que Carlos I. S. Azambuja colocou no Mídia Sem Máscara (22 de junho), extraído do livro A Infelicidade do Século de Alain Besançon (Editora Bertrand Brasil, 2000). Leiam:
A destruição da política pelo nazismo e comunismo
Antes de tomar o Poder e, para tomá-lo, os partidos comunistas e os nazistas utilizam todos os meios da política. Eles se instalam no jogo político, apesar de eles mesmos, segundo seus próprios critérios e sua disciplina interna, se colocarem fora do jogo. Por exemplo, quando o Partido Bolchevique reivindicou a terra para os camponeses e a paz imediata, não era para se contentar com o êxito dessas duas reivindicações. Tratava-se de colocar os camponeses e os soldados do seu lado a fim de lançar o processo revolucionário. Feita a revolução, a terra foi expropriada e a guerra foi ativamente preparada sem que o partido tivesse visto nisso qualquer contradição.
Uma vez no Poder, a política do partido fica mais do que nunca voltada para a destruição do político. As formas orgânicas da vida social, a família, as classes, os grupos de interesse, os corpos constituídos, são suprimidos. A partir daí, as pessoas, privadas de todo direito de associação, de agregação espontânea, de representação, reduzidas à condição de átomos, são colocadas em um novo enquadramento, o qual se modela sobre aquele que deveria subsistir se o socialismo existisse como sociedade. Ele assume, então, a denominação de sovietes, de uniões, de comunas.
O Partido Nazista imitou sumariamente a destruição comunista do político. Ele também tomou o Poder escondendo seus objetivos reais, enganando seus aliados provisórios para, em seguida, liquidá-los. Ele também criou quadros novos e integrou neles a juventude e as ‘massas’. Destruir imediatamente os velhos quadros não era seu objetivo. Contentou-se em neutralizá-los e submetê-los. Assim, sobreviveram no nazismo os empresários, um mercado, juízes e antigos funcionários. A seguir veio a guerra, que acentuou e acelerou o controle nazista. Não se sabe o que teria acontecido se ela tivesse sido ganha.
O Führerprinzip foi uma peça essencial da trama social. Ela se organizava em torno de uma hierarquia de chefes leais, devotados ao Reich, ligados por um juramento, e isso até o fundo da escala a partir do chefe supremo, cuja exaltação era coerente com o espírito do sistema. O Partido Comunista também era hierarquizado. A originalidade do partido de Lenin residiu no fato de que, desde a sua fundação, o centro designava à ‘base’ aqueles que deveriam ser eleitos, de tal modo que a eleição democrática se tornava simplesmente um teste do poder absoluto do ‘centro’. É que a consciência gnóstica, o saber científico fundador do partido, se encontrava teoricamente no organismo dirigente e se difundia a partir desse ponto para a ‘base’ que, remetendo o poder para o ‘centro’, manifestava seu progresso na assimilação da doutrina e da ‘linha’. Dessa forma, viu-se aumentar o culto ao chefe Lenin, o que chegou ao seu apogeu com Stalin. Trotsky, Zinoviev, Bukharin, Stalin buscavam o mesmo objetivo: o socialismo, mas seria necessário que um deles fosse o chefe. Sucederam-se, então, em circuito fechado as traições, prisões e assassinatos. O culto subsistiu mas, no tempo de Brejnev já demonstrava as suas fraquezas.
Os dois regimes – o nazista e o comunista – se referem a um passado mítico sobre o qual se modela um futuro imaginário (...) A idéia de Marx, segundo as palavras de Raymond Aron, era ir de Rousseau a Rousseau, passando por Saint-Simon, isto é, pelo progresso técnico e industrial. Já o hitlerismo era voluntarista: apenas a obra demiúrgica da vontade poderia restaurar a boa selva, em equilíbrio biológico. O leninismo contava com o automovimento da História para dar à luz a Arcádia moderna. O automovimento produz o partido, instrumento desse parto. O voluntarismo também é exaltado mas, ao mesmo tempo, ele é exaltado e negado, uma vez que ele – o partido – encarna apenas a consciência da necessidade.
Entre esse passado fabuloso e esse futuro ideal, o tempo presente não tem valor próprio (...) O passado próximo é o inimigo, o presente não conta, tudo fica submetido ao futuro, aos fins últimos, à utopia.
Os fins ilimitados do nazismo – A política de apaziguamento conduzida por Chamberlain, e em certa medida a política de divisão seguida por Stalin em 1940, repousavam sobre a hipótese de que Hitler poderia estar satisfeito com o que já havia obtido, pois já havia rasgado o Tratado de Versalhes e ‘adquirido’ bastantes ‘terras a Leste’ (...) Tendo reorganizado a Alemanha, eliminado os inaptos, os judeus, os ‘inferiores’, ele sentiu necessidade de ir mais longe (...) Fez um pacto com a União Soviética e, em uma leviandade incompreensível, declarou guerra aos EUA.
Nessa guerra, o nazismo revelou a si mesmo a sua vocação para exterminar fatia por fatia toda a Humanidade. Na medida em que o mundo resistia, a polaridade ariano-judia se tornava cada vez mais evidente. O judeu aparecia aos olhos de Hitler como o indício de resistência à realização do grande plano, pois tinha corrompido o mundo inteiro, conspurcado tudo, ‘enjudeusado’ tudo. Por isso, era a totalidade da humanidade que deveria ser purificada. Exterminada, portanto.
As ordens de aniquilamento dadas por Hitler, em 18 e 19 de março de 1945, não visavam uma luta final heróica (...) Para uma luta desse tipo, pouco adiantava colocar centenas de milhares de alemães no caminho da morte, nem fazer destruir tudo o que poderia servir à mais humilde das sobrevivências. Esse último genocídio de Hitler, agora voltado contra a própria Alemanha, tinha como único objetivo punir os alemães por sua recusa em agir como voluntários na direção de uma luta final heróica, no desempenho do papel que Hitler lhes tinha atribuído. Aos olhos de Hitler, isso constituía um crime passível de pena de morte. Um povo que não assume o papel que lhe era destinado deve morrer (1).
Hitler se recusou a construir ‘o nazismo em um só país’ e, para isso, os nazistas praticaram a ‘tática do salame’, dado que cada ‘raça’, antes poupada, via em seguida chegar a sua vez. Todavia, rapidamente tudo isso desembocou em um massacre geral. Eles não poderiam, como teria feito Stalin, prometer a independência à Ucrânia, dispostos a acertar suas contas com ela após a vitória. Foi necessário que eles tratassem de exterminá-la imediatamente, o que levou os ucranianos a ficarem contra eles, nazistas.
Hitler acreditava ser o veículo genial da Volksgeit e que suas ordens, no início prudentes, depois insanas, vinham de algo situado acima dele, e essa embriaguez era em parte comunicada ao seu povo. Por isso a irracionalidade na condução da guerra. Algumas decisões desejadas por seus generais teriam podido equilibrá-la e, pelo menos, levá-la a um empate, sob a condição, nunca dada, de que ela se propusesse fins limitados, falta que acabou, por culpa de Hitler e de seu wagnerismo doentio, levando-o à derrota.
Os fins ilimitados do comunismo – O projeto comunista é declaradamente total. Ele busca em extensão a revolução mundial, compreendendo por isso uma mutação radical da sociedade, da cultura e do próprio ser humano, autorizando a colocação em prática de meios racionais para obter esses fins alheios à razão. Lenin, durante a guerra, mostrou-se um sonhador quimérico, sobrepondo às realidades do mundo as entidades abstratas do capitalismo, do imperialismo, do oportunismo, do esquerdismo e de muitos outros ‘ismos’ que, em sua opinião, explicavam tudo. Ele os aplicava tanto à Suiça, como à Alemanha e à Rússia (...) A tomada do Poder por um partido comunista é preparada por uma luta puramente política no seio de uma sociedade normalmente política. É lá que ele treina suas táticas e as coloca em prática depois da vitória do partido. Aquela – por exemplo – chamada ‘tática do salame’, que consiste em fazer alianças com forças não-comunistas, de forma que force o aliado a participar da eliminação dos adversários: primeiro, a ‘extrema direita’, com a ajuda de toda a esquerda; depois, a fração moderada dessa esquerda e, assim, sucessivamente, até a última ‘fatia’, que deve submeter-se e ‘fundir-se’ sob pena de ser, por sua vez, eliminada. Esse profissionalismo, que inclui a astúcia, a paciência, a racionalidade, quanto ao objetivo buscado, faz a superioridade do leninismo. Mas trata-se apenas de destruição, pois a construção é impossível porque esse objetivo é insensato. A prática comunista não segue uma inspiração estética, mas procede, a cada instante de uma deliberação ‘científica’. A falsa ciência copiando da verdadeira seu caráter demonstrativo e seus procedimentos lógicos. Isso apenas torna mais louca a empresa, mais implacável a decisão e mais difícil a correção, pois a falsa ciência impede que se constatem os resultados da experiência. Pouco a pouco a destruição se amplia e se torna total. Na Rússia ela percorreu seis etapas: primeiro, a destruição do adversário político: a antiga administração. Isso foi feito em um piscar de olhos, logo em seguida ao putsch de outubro de 1917. Depois, a destruição das resistências sociais, reais ou potenciais: partidos, exército, sindicatos, cooperativas, corpos culturais, universidades, escolas, academias, Igreja, editoras, imprensa. No entanto, o partido logo se dá conta de que o socialismo nem sempre existiu como sociedade livre, auto-regulada e que, assim, a coação é, mais do que nunca, necessária para fazê-lo surgir. Mas a doutrina prevê que há apenas duas realidades – o socialismo e o capitalismo. É nesse momento, então, que a realidade se confunde com o capitalismo e que é preciso – terceira etapa – destruir toda a realidade: a aldeia, a família, os restos da educação burguesa, a língua russa. É preciso estender o controle sobre cada indivíduo tornado solitário e desarmado pela destruição de seu sistema de vida, levá-lo para um novo sistema em que será reeducado, recondicionado. Eliminar, enfim, os inimigos escondidos.
O fracasso da construção do socialismo no exterior deveu-se ao ambiente externo hostil. Pela sua simples existência, ele é uma ameaça, quaisquer que sejam as cores desse espectro hostil: democracia burguesa, social-democracia, fascismo. É preciso então – quarta etapa – criar em cada país organizações de tipo bolchevique com um organismo central para coordená-los e adaptá-los a esse modelo central, o Komintern. Quando, valendo-se das circunstâncias, o comunismo pôde se estender, as novas zonas agregadas ao ‘campo socialista’ conheceram etapas análogas de destruição. Porém, em toda a extensão do campo, o partido (pela voz de Stalin) assinala que ‘o capitalismo está mais forte que nunca’, se infiltra e se estende no próprio partido, que perde a sua virtude. Cabe então ao líder do partidário, e apenas a ele, destruir o partido (quinta etapa), para recriar um outro com seus restos. Stalin fez isso uma vez, não sem imitar Hitler e a sua ‘noite dos longos punhais’. Ele se preparava para fazê-lo uma segunda vez quando a morte o surpreendeu. Mao-Tsetung fez duas vezes: no momento do ‘Grande Salto para Frente’ e, depois, mais nitidamente ainda, na ‘Revolução Cultural’.
Usura e Destruição – Na lógica pura dos dois sistemas levada ao limite está contido o extermínio de toda a população da Terra. Mas essa lógica não se aplica e não pode se aplicar até o fim. O princípio do comunismo é o de subordinar tudo à tomada e conservação do Poder, pois é ao Poder que cabe a responsabilidade de realizar o projeto. Todavia, as destruições causam um tal desgaste que o poder do partido corre o risco, não de enfrentar uma revolta geral porque sabe preveni-la, mas de ver desaparecer a matéria humana sobre a qual ele se exerce. Foi o que aconteceu no final do ‘comunismo de guerra’: a Rússia se afundava, se liquefazia quando Lenin decretou a trégua da NEP (...) Enquanto a revolução não vence em escala mundial, o mundo exterior, mesmo reduzido a uma ilhota minúscula, é uma ameaça mortal. Por sua simples existência, ele corre o risco de fazer explodir a bolha de sabão da ficção socialista. E pouco importa que ele seja verdadeiramente hostil, como ele só foi uma vez com Hitler, ou que ele queira apenas a tranqüilidade e o status quo, como desejou o Ocidente depois da derrota do nazismo. Para manter o mundo real à distância, para eventualmente destruí-lo, é preciso uma força real à disposição do partido e esta só pode ser tirada da realidade que ele controla. Ele tem necessidade de um mínimo de economia real para nutrir a população de um mínimo de tecnologia e de indústria para equipar o Exército. Subsistem então produtores, técnicos, cientistas. O partido não pode fazer passar para o outro lado do espelho tudo o que ele é, pois seria vítima do nada que ele mesmo produziu. Enfim, a penúltima etapa, a destruição do próprio partido, colide com os reflexos vitais de sobrevivência. Depois dos grandes expurgos de Stalin e de Mao, o partido optou por algumas medidas ‘conservadoras’: não se matam mais comunistas, eles apenas caem em desgraça. Na Rússia, tudo isso levou à decadência do sistema. O partido envelheceu, porque a conservação do Poder terminou por se identificar com a conservação dos postos e dos cargos.
As táticas colocadas em prática em tempos dramáticos só servem para isso. Brejnev apodreceu lentamente na direção máxima e o partido se corrompeu, pois embora se dedicando mais aos objetivos do comunismo, quis, ao mesmo tempo, usufruir o poder e desfrutar das riquezas. Sai da irrealidade e entra na realidade devastada por sua ação, onde só encontra, em abundância, mercadorias vulgares, que nem a arte consegue embelezar, como a vodca, as datchas e as grandes limusines. Quanto ao povo, este se atola na porção da realidade que lhe foi sempre concedida, se vira como pode, se desinteressa de um regime que não mais lhe oferece a consolação da queda dos poderosos e a oportunidade de substituí-los. A degradação geral chega finalmente a um limite. Quando um piparote aleatório faz desabar o castelo de cartas, que poderia ter desabado muito antes, descobre-se uma paisagem pós-comunista mafiosa e semi-indolente, esgotada em sua energia.
Na China, os sobreviventes dos expurgos maoístas tomaram um caminho diferente. As necessidades do poder puro se misturaram aos cuidados de desenvolver o poder da China enquanto tal, e o comunismo morto é infiltrado pelo nacionalismo vivo. Contemporâneos da decadência do sovietismo, eles lamentaram ter seguido um modelo errado de desenvolvimento, enquanto que outras partes do mundo chinês, e em sua periferia, tinham seguido um outro modelo, melhor. Daí o caráter ambíguo da China atual, em pleno desenvolvimento, mas sem que o partido abandone seu projeto e sem que se saiba se esse partido é ainda comunista. As circunstâncias fizeram com que restasse apenas um regime comunista puro que, até hoje, preferiu a lógica do auto-aniquilamento: a Coréia do Norte.
Não sabemos como teria evoluído o nazismo. Ele não chegou ao seu clímax, pois foi derrubado nos primeiros passos da sua expansão. Ele se voltou para a realidade externa antes de ter terminado com a sociedade alemã. Enquanto a URSS preferiu a subversão organizada, o desencorajamento programado do ‘inimigo externo’, e o Exército Vermelho chegando somente para selar a vitória política, o nazismo recorreu imediatamente à guerra. A guerra acelerou de modo formidável o programa nazista, mas suscitando uma resistência mundial rapidamente vitoriosa.
As características do nazismo permitem eventualmente imaginar que Hitler teria podido chegar a uma paz de compromisso, que lhe teria deixado uma área vasta e estável. Nesse caso, morto o Führer, o regime teria se comportado de forma análoga à do regime leninista.
Na usura e no fracasso dos regimes totalitários, o fator externo é inegavelmente importante. Ele foi decisivo no caso da Alemanha nazista, esmagada por vários exércitos. Em contrapartida, o mundo capitalista nunca constituiu perigo para os regimes comunistas. O nazismo aumentou a legitimidade do comunismo aos olhos do Ocidente. Durante a época da chamada ‘Guerra Fria’, a política do roll back foi imediatamente afastada em favor daquela do containment. Essa opção não impediu vastas expansões territoriais comunistas na Ásia, na África e até na América. Finalmente, o único ponto do mundo em que o comunismo foi derrubado da maneira como o foi o nazismo, por uma invasão maciça devidamente organizada, em meio, é verdade, a um concerto de protestos de algumas potências não comunistas, foi a minúscula ilha de Granada.
O texto acima foi extraído das páginas 65 a 80 do livro de Alain Besançon, A Infelicidade do Século, editora Betrand Brasil, 2000
Nota:
(1) Sebastien Haffner, Un Certain Adolf Hitler, Paris, Grasset, 1979
A destruição da política pelo nazismo e comunismo
Antes de tomar o Poder e, para tomá-lo, os partidos comunistas e os nazistas utilizam todos os meios da política. Eles se instalam no jogo político, apesar de eles mesmos, segundo seus próprios critérios e sua disciplina interna, se colocarem fora do jogo. Por exemplo, quando o Partido Bolchevique reivindicou a terra para os camponeses e a paz imediata, não era para se contentar com o êxito dessas duas reivindicações. Tratava-se de colocar os camponeses e os soldados do seu lado a fim de lançar o processo revolucionário. Feita a revolução, a terra foi expropriada e a guerra foi ativamente preparada sem que o partido tivesse visto nisso qualquer contradição.
Uma vez no Poder, a política do partido fica mais do que nunca voltada para a destruição do político. As formas orgânicas da vida social, a família, as classes, os grupos de interesse, os corpos constituídos, são suprimidos. A partir daí, as pessoas, privadas de todo direito de associação, de agregação espontânea, de representação, reduzidas à condição de átomos, são colocadas em um novo enquadramento, o qual se modela sobre aquele que deveria subsistir se o socialismo existisse como sociedade. Ele assume, então, a denominação de sovietes, de uniões, de comunas.
O Partido Nazista imitou sumariamente a destruição comunista do político. Ele também tomou o Poder escondendo seus objetivos reais, enganando seus aliados provisórios para, em seguida, liquidá-los. Ele também criou quadros novos e integrou neles a juventude e as ‘massas’. Destruir imediatamente os velhos quadros não era seu objetivo. Contentou-se em neutralizá-los e submetê-los. Assim, sobreviveram no nazismo os empresários, um mercado, juízes e antigos funcionários. A seguir veio a guerra, que acentuou e acelerou o controle nazista. Não se sabe o que teria acontecido se ela tivesse sido ganha.
O Führerprinzip foi uma peça essencial da trama social. Ela se organizava em torno de uma hierarquia de chefes leais, devotados ao Reich, ligados por um juramento, e isso até o fundo da escala a partir do chefe supremo, cuja exaltação era coerente com o espírito do sistema. O Partido Comunista também era hierarquizado. A originalidade do partido de Lenin residiu no fato de que, desde a sua fundação, o centro designava à ‘base’ aqueles que deveriam ser eleitos, de tal modo que a eleição democrática se tornava simplesmente um teste do poder absoluto do ‘centro’. É que a consciência gnóstica, o saber científico fundador do partido, se encontrava teoricamente no organismo dirigente e se difundia a partir desse ponto para a ‘base’ que, remetendo o poder para o ‘centro’, manifestava seu progresso na assimilação da doutrina e da ‘linha’. Dessa forma, viu-se aumentar o culto ao chefe Lenin, o que chegou ao seu apogeu com Stalin. Trotsky, Zinoviev, Bukharin, Stalin buscavam o mesmo objetivo: o socialismo, mas seria necessário que um deles fosse o chefe. Sucederam-se, então, em circuito fechado as traições, prisões e assassinatos. O culto subsistiu mas, no tempo de Brejnev já demonstrava as suas fraquezas.
Os dois regimes – o nazista e o comunista – se referem a um passado mítico sobre o qual se modela um futuro imaginário (...) A idéia de Marx, segundo as palavras de Raymond Aron, era ir de Rousseau a Rousseau, passando por Saint-Simon, isto é, pelo progresso técnico e industrial. Já o hitlerismo era voluntarista: apenas a obra demiúrgica da vontade poderia restaurar a boa selva, em equilíbrio biológico. O leninismo contava com o automovimento da História para dar à luz a Arcádia moderna. O automovimento produz o partido, instrumento desse parto. O voluntarismo também é exaltado mas, ao mesmo tempo, ele é exaltado e negado, uma vez que ele – o partido – encarna apenas a consciência da necessidade.
Entre esse passado fabuloso e esse futuro ideal, o tempo presente não tem valor próprio (...) O passado próximo é o inimigo, o presente não conta, tudo fica submetido ao futuro, aos fins últimos, à utopia.
Os fins ilimitados do nazismo – A política de apaziguamento conduzida por Chamberlain, e em certa medida a política de divisão seguida por Stalin em 1940, repousavam sobre a hipótese de que Hitler poderia estar satisfeito com o que já havia obtido, pois já havia rasgado o Tratado de Versalhes e ‘adquirido’ bastantes ‘terras a Leste’ (...) Tendo reorganizado a Alemanha, eliminado os inaptos, os judeus, os ‘inferiores’, ele sentiu necessidade de ir mais longe (...) Fez um pacto com a União Soviética e, em uma leviandade incompreensível, declarou guerra aos EUA.
Nessa guerra, o nazismo revelou a si mesmo a sua vocação para exterminar fatia por fatia toda a Humanidade. Na medida em que o mundo resistia, a polaridade ariano-judia se tornava cada vez mais evidente. O judeu aparecia aos olhos de Hitler como o indício de resistência à realização do grande plano, pois tinha corrompido o mundo inteiro, conspurcado tudo, ‘enjudeusado’ tudo. Por isso, era a totalidade da humanidade que deveria ser purificada. Exterminada, portanto.
As ordens de aniquilamento dadas por Hitler, em 18 e 19 de março de 1945, não visavam uma luta final heróica (...) Para uma luta desse tipo, pouco adiantava colocar centenas de milhares de alemães no caminho da morte, nem fazer destruir tudo o que poderia servir à mais humilde das sobrevivências. Esse último genocídio de Hitler, agora voltado contra a própria Alemanha, tinha como único objetivo punir os alemães por sua recusa em agir como voluntários na direção de uma luta final heróica, no desempenho do papel que Hitler lhes tinha atribuído. Aos olhos de Hitler, isso constituía um crime passível de pena de morte. Um povo que não assume o papel que lhe era destinado deve morrer (1).
Hitler se recusou a construir ‘o nazismo em um só país’ e, para isso, os nazistas praticaram a ‘tática do salame’, dado que cada ‘raça’, antes poupada, via em seguida chegar a sua vez. Todavia, rapidamente tudo isso desembocou em um massacre geral. Eles não poderiam, como teria feito Stalin, prometer a independência à Ucrânia, dispostos a acertar suas contas com ela após a vitória. Foi necessário que eles tratassem de exterminá-la imediatamente, o que levou os ucranianos a ficarem contra eles, nazistas.
Hitler acreditava ser o veículo genial da Volksgeit e que suas ordens, no início prudentes, depois insanas, vinham de algo situado acima dele, e essa embriaguez era em parte comunicada ao seu povo. Por isso a irracionalidade na condução da guerra. Algumas decisões desejadas por seus generais teriam podido equilibrá-la e, pelo menos, levá-la a um empate, sob a condição, nunca dada, de que ela se propusesse fins limitados, falta que acabou, por culpa de Hitler e de seu wagnerismo doentio, levando-o à derrota.
Os fins ilimitados do comunismo – O projeto comunista é declaradamente total. Ele busca em extensão a revolução mundial, compreendendo por isso uma mutação radical da sociedade, da cultura e do próprio ser humano, autorizando a colocação em prática de meios racionais para obter esses fins alheios à razão. Lenin, durante a guerra, mostrou-se um sonhador quimérico, sobrepondo às realidades do mundo as entidades abstratas do capitalismo, do imperialismo, do oportunismo, do esquerdismo e de muitos outros ‘ismos’ que, em sua opinião, explicavam tudo. Ele os aplicava tanto à Suiça, como à Alemanha e à Rússia (...) A tomada do Poder por um partido comunista é preparada por uma luta puramente política no seio de uma sociedade normalmente política. É lá que ele treina suas táticas e as coloca em prática depois da vitória do partido. Aquela – por exemplo – chamada ‘tática do salame’, que consiste em fazer alianças com forças não-comunistas, de forma que force o aliado a participar da eliminação dos adversários: primeiro, a ‘extrema direita’, com a ajuda de toda a esquerda; depois, a fração moderada dessa esquerda e, assim, sucessivamente, até a última ‘fatia’, que deve submeter-se e ‘fundir-se’ sob pena de ser, por sua vez, eliminada. Esse profissionalismo, que inclui a astúcia, a paciência, a racionalidade, quanto ao objetivo buscado, faz a superioridade do leninismo. Mas trata-se apenas de destruição, pois a construção é impossível porque esse objetivo é insensato. A prática comunista não segue uma inspiração estética, mas procede, a cada instante de uma deliberação ‘científica’. A falsa ciência copiando da verdadeira seu caráter demonstrativo e seus procedimentos lógicos. Isso apenas torna mais louca a empresa, mais implacável a decisão e mais difícil a correção, pois a falsa ciência impede que se constatem os resultados da experiência. Pouco a pouco a destruição se amplia e se torna total. Na Rússia ela percorreu seis etapas: primeiro, a destruição do adversário político: a antiga administração. Isso foi feito em um piscar de olhos, logo em seguida ao putsch de outubro de 1917. Depois, a destruição das resistências sociais, reais ou potenciais: partidos, exército, sindicatos, cooperativas, corpos culturais, universidades, escolas, academias, Igreja, editoras, imprensa. No entanto, o partido logo se dá conta de que o socialismo nem sempre existiu como sociedade livre, auto-regulada e que, assim, a coação é, mais do que nunca, necessária para fazê-lo surgir. Mas a doutrina prevê que há apenas duas realidades – o socialismo e o capitalismo. É nesse momento, então, que a realidade se confunde com o capitalismo e que é preciso – terceira etapa – destruir toda a realidade: a aldeia, a família, os restos da educação burguesa, a língua russa. É preciso estender o controle sobre cada indivíduo tornado solitário e desarmado pela destruição de seu sistema de vida, levá-lo para um novo sistema em que será reeducado, recondicionado. Eliminar, enfim, os inimigos escondidos.
O fracasso da construção do socialismo no exterior deveu-se ao ambiente externo hostil. Pela sua simples existência, ele é uma ameaça, quaisquer que sejam as cores desse espectro hostil: democracia burguesa, social-democracia, fascismo. É preciso então – quarta etapa – criar em cada país organizações de tipo bolchevique com um organismo central para coordená-los e adaptá-los a esse modelo central, o Komintern. Quando, valendo-se das circunstâncias, o comunismo pôde se estender, as novas zonas agregadas ao ‘campo socialista’ conheceram etapas análogas de destruição. Porém, em toda a extensão do campo, o partido (pela voz de Stalin) assinala que ‘o capitalismo está mais forte que nunca’, se infiltra e se estende no próprio partido, que perde a sua virtude. Cabe então ao líder do partidário, e apenas a ele, destruir o partido (quinta etapa), para recriar um outro com seus restos. Stalin fez isso uma vez, não sem imitar Hitler e a sua ‘noite dos longos punhais’. Ele se preparava para fazê-lo uma segunda vez quando a morte o surpreendeu. Mao-Tsetung fez duas vezes: no momento do ‘Grande Salto para Frente’ e, depois, mais nitidamente ainda, na ‘Revolução Cultural’.
Usura e Destruição – Na lógica pura dos dois sistemas levada ao limite está contido o extermínio de toda a população da Terra. Mas essa lógica não se aplica e não pode se aplicar até o fim. O princípio do comunismo é o de subordinar tudo à tomada e conservação do Poder, pois é ao Poder que cabe a responsabilidade de realizar o projeto. Todavia, as destruições causam um tal desgaste que o poder do partido corre o risco, não de enfrentar uma revolta geral porque sabe preveni-la, mas de ver desaparecer a matéria humana sobre a qual ele se exerce. Foi o que aconteceu no final do ‘comunismo de guerra’: a Rússia se afundava, se liquefazia quando Lenin decretou a trégua da NEP (...) Enquanto a revolução não vence em escala mundial, o mundo exterior, mesmo reduzido a uma ilhota minúscula, é uma ameaça mortal. Por sua simples existência, ele corre o risco de fazer explodir a bolha de sabão da ficção socialista. E pouco importa que ele seja verdadeiramente hostil, como ele só foi uma vez com Hitler, ou que ele queira apenas a tranqüilidade e o status quo, como desejou o Ocidente depois da derrota do nazismo. Para manter o mundo real à distância, para eventualmente destruí-lo, é preciso uma força real à disposição do partido e esta só pode ser tirada da realidade que ele controla. Ele tem necessidade de um mínimo de economia real para nutrir a população de um mínimo de tecnologia e de indústria para equipar o Exército. Subsistem então produtores, técnicos, cientistas. O partido não pode fazer passar para o outro lado do espelho tudo o que ele é, pois seria vítima do nada que ele mesmo produziu. Enfim, a penúltima etapa, a destruição do próprio partido, colide com os reflexos vitais de sobrevivência. Depois dos grandes expurgos de Stalin e de Mao, o partido optou por algumas medidas ‘conservadoras’: não se matam mais comunistas, eles apenas caem em desgraça. Na Rússia, tudo isso levou à decadência do sistema. O partido envelheceu, porque a conservação do Poder terminou por se identificar com a conservação dos postos e dos cargos.
As táticas colocadas em prática em tempos dramáticos só servem para isso. Brejnev apodreceu lentamente na direção máxima e o partido se corrompeu, pois embora se dedicando mais aos objetivos do comunismo, quis, ao mesmo tempo, usufruir o poder e desfrutar das riquezas. Sai da irrealidade e entra na realidade devastada por sua ação, onde só encontra, em abundância, mercadorias vulgares, que nem a arte consegue embelezar, como a vodca, as datchas e as grandes limusines. Quanto ao povo, este se atola na porção da realidade que lhe foi sempre concedida, se vira como pode, se desinteressa de um regime que não mais lhe oferece a consolação da queda dos poderosos e a oportunidade de substituí-los. A degradação geral chega finalmente a um limite. Quando um piparote aleatório faz desabar o castelo de cartas, que poderia ter desabado muito antes, descobre-se uma paisagem pós-comunista mafiosa e semi-indolente, esgotada em sua energia.
Na China, os sobreviventes dos expurgos maoístas tomaram um caminho diferente. As necessidades do poder puro se misturaram aos cuidados de desenvolver o poder da China enquanto tal, e o comunismo morto é infiltrado pelo nacionalismo vivo. Contemporâneos da decadência do sovietismo, eles lamentaram ter seguido um modelo errado de desenvolvimento, enquanto que outras partes do mundo chinês, e em sua periferia, tinham seguido um outro modelo, melhor. Daí o caráter ambíguo da China atual, em pleno desenvolvimento, mas sem que o partido abandone seu projeto e sem que se saiba se esse partido é ainda comunista. As circunstâncias fizeram com que restasse apenas um regime comunista puro que, até hoje, preferiu a lógica do auto-aniquilamento: a Coréia do Norte.
Não sabemos como teria evoluído o nazismo. Ele não chegou ao seu clímax, pois foi derrubado nos primeiros passos da sua expansão. Ele se voltou para a realidade externa antes de ter terminado com a sociedade alemã. Enquanto a URSS preferiu a subversão organizada, o desencorajamento programado do ‘inimigo externo’, e o Exército Vermelho chegando somente para selar a vitória política, o nazismo recorreu imediatamente à guerra. A guerra acelerou de modo formidável o programa nazista, mas suscitando uma resistência mundial rapidamente vitoriosa.
As características do nazismo permitem eventualmente imaginar que Hitler teria podido chegar a uma paz de compromisso, que lhe teria deixado uma área vasta e estável. Nesse caso, morto o Führer, o regime teria se comportado de forma análoga à do regime leninista.
Na usura e no fracasso dos regimes totalitários, o fator externo é inegavelmente importante. Ele foi decisivo no caso da Alemanha nazista, esmagada por vários exércitos. Em contrapartida, o mundo capitalista nunca constituiu perigo para os regimes comunistas. O nazismo aumentou a legitimidade do comunismo aos olhos do Ocidente. Durante a época da chamada ‘Guerra Fria’, a política do roll back foi imediatamente afastada em favor daquela do containment. Essa opção não impediu vastas expansões territoriais comunistas na Ásia, na África e até na América. Finalmente, o único ponto do mundo em que o comunismo foi derrubado da maneira como o foi o nazismo, por uma invasão maciça devidamente organizada, em meio, é verdade, a um concerto de protestos de algumas potências não comunistas, foi a minúscula ilha de Granada.
O texto acima foi extraído das páginas 65 a 80 do livro de Alain Besançon, A Infelicidade do Século, editora Betrand Brasil, 2000
Nota:
(1) Sebastien Haffner, Un Certain Adolf Hitler, Paris, Grasset, 1979
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