Saturday, April 28, 2007

Ainda o filme "300"

Opa! Dei uma bobeada e só fiquei sabendo ontem (27 abril), por um aluno, de uma postagem neste blog que criticava os meus comentários do filme “300”. O post é de José Wagner Alcântara, advogado, e foi enviado no dia 16 de abril. O seu texto não é ofensivo e apenas mostra uma discordância de opinião, mas merece uma resposta em razão de seus equívocos. Abaixo em itálico partes do texto do José Wagner, seguidos dos meus comentários:

Certas cenas ficariam melhor em um vídeo game do que em um filme.

Pode ser. Mas esse tipo de imagem ou de cena não é monopólio estético do videogame. Não há nenhum problema em seu uso pelo cinema, cuja “linguagem” está sempre aberta à inovação e adaptação.

Não tem contexto histórico. Quer alçar-se à categoria de épico, mas não passa de uma história em quadrinhos. É um engodo tanto quanto o tal de Código da Vince, que alguns ingênuos ainda hoje teimam em achar que é uma pesquisa científica séria.

Uai? Como não tem contexto histórico? Segundo Heródoto, Diodoro e a tradição historiográfica clássica, a Grécia foi invadida pelo império persa com um grande exército comandado pessoalmente pelo imperador Xerxes; os espartanos e outros gregos enfrentaram, em desvantagem numérica, os persas nas Termópilas; o rei Leônidas de Esparta comandou os gregos na batalha das Termópilas, acompanhado por um grupo de 300 espartanos; durante dois dias os gregos conseguiram deter os invasores, inclusive a elite dos “Imortais” persas; um grego chamado Efialtes revelou aos persas um caminho alternativo para cercar os gregos; Leônidas resolveu permanecer no local e lutar bravamente contra os invasores para atrasá-los na invasão o máximo possível; Leônidas e praticamente todos espartanos morreram no terceiro dia lutando contra os persas; tempos depois, o exército persa foi derrotado pelos gregos, sob o comando dos espartanos, na Batalha de Platéia. Portanto, EM SUAS LINHAS GERAIS, O FILME É SIM FIEL AO QUE ACONTECEU. É verdade que ele omitiu parte da história e inventou outras coisas, mas SUBSTANCIALMENTE ELE TEM CONTEXTO HISTÓRICO. Como não? Se alguém duvida desse contexto, leia a obra de Heródoto (o episódio das Termópilas está no capítulo ou “livro” VII). Por outro lado, como já havia comentado neste blog, o filme nunca teve a intenção de ser uma reconstituição TOTALMENTE fiel ao que aconteceu. Ele é propositalmente uma transposição de uma história em quadrinhos para a tela – quadrinhos que, por sua vez, são uma adaptação livre dos acontecimentos reais. Nesse sentido, ele não é um engodo.

Ademais o senhor faz uma defesa muito veemente da violência, mas esparta é vista por muitos historiadores como um centro de tirania e opressão e atenas sim como o verdadeiro centro das boas tradições ocidentais.

Eu não faço “uma defesa muito veemente da violência”. Apenas afirmo, como qualquer historiador conhecedor da Grécia antiga, que a sociedade e a política gregas eram violentas. Em primeiro lugar, porque os gregos utilizaram-se da escravidão e de outras formas de trabalho compulsório ou, para utilizar um termo mais familiar à área do José Wagner, da coerção jurídico-política – as leis e o Estado permitindo o trabalho forçado, dando ao senhor poder absoluto sobre o corpo do seu escravo (castigos físicos, exploração, humilhação). É verdade que nas antigas sociedades escravistas, como nas modernas, existiram leis que tentavam conter os abusos dos senhores. Mas elas não questionaram o uso da violência sobre os escravos, apenas alguns excessos dos senhores. Ainda assim, é duvidoso que essas “regulamentações” tenham sido rigorosamente seguidas.

Contudo, a violência do mundo grego não era apenas resultado de uma cultura escravista que, na nossa tradição iluminista, seria considerada desumana. A violência também era decorrente de uma cultura guerreira, reforçada pela divisão da Grécia em cidades-estados rivais que disputavam terras, hegemonia e prestígio regional. A guerra, a possibilidade da guerra e a preparação para a guerra era algo natural para os gregos, muito mais do que para nós. A mais antiga obra literária da Grécia antiga (e, portanto, da civilização ocidental) trata da violência e da guerra – a Ilíada de Homero, ambientada na Guerra de Tróia, tendo como protagonistas os guerreiros Aquiles e Heitor. As três maiores obras de História escritas na Antiguidade são de autores gregos e tem como foco a guerra: a História de Heródoto (Guerras Greco-Persas), a História da Guerra do Peloponeso de Tucídides e a História de Políbio (Guerras Púnicas). Os gregos, sobretudo sua elite culta, tinham uma obsessão com a guerra. Os jovens eram educados escutando histórias militares, admirando guerreiros e se preparando para guerra. O apogeu da cultura clássica grega foi em Atenas na época de Péricles, que foi a época do imperialismo ateniense sobre outras cidades-estados. O imperialismo da culta e democrática Atenas desencadeou o mais violento conflito da história da Grécia – a Guerra do Peloponeso. Como os demais gregos, os atenienses cometeram atrocidades sobre seus inimigos, com um ódio e fúria que desmentem totalmente a visão romântica e idealista de que Atenas não tinha tradição guerreira ou não era violenta. Antes desse conflito, o espírito guerreiro ateniense já havia se destacado, e respeitosamente reconhecido pelos espartanos, durante as Guerras Greco-Persas, sobretudo na Batalha de Maratona (um massacre dos persas pelos atenienses) e na Batalha de Salamina.

Em razão dessa tradição guerreira generalizada, o principal dos deveres da cidadania grega era o de prestar serviço militar – atividade fundamental para garantir a segurança e os interesses coletivos da comunidade de cidadãos. Isso não foi de forma alguma uma característica exclusiva de Esparta – foi uma característica de todas as cidades-estados, inclusive de Atenas. Nesse aspecto, a principal diferença entre Esparta e Atenas foi que na primeira o exército de cidadãos era permanente e profissional, e na segunda ele era convocado em época de guerra. Enquanto os espartanos eram soldados de tempo integral, o exército ateniense era uma milícia bem-preparada de camponeses, artesãos, comerciantes e aristocratas. Mas a preparação para guerra e a cultura guerreira era comum a ambas, embora obviamente muito mais acentuadas em Esparta. Exatamente porque era mais forte em Esparta, muita gente pensa equivocadamente que essa tradição guerreira inexistia em Atenas e que, portanto, os atenienses desconheceram a violência política, voltando-se para as artes, para a filosofia e para a construção da democracia. Na verdade, em Atenas, como nas outras cidades-estados gregas, a violência generalizada também era uma decorrência de questões de política interna, de lutas entre facções que disputavam o poder nas cidades-estados e da construção da cidadania. Os gregos inventaram uma palavra para esse conflito político interno marcado pela violência – stasis. A democracia ateniense nasceu em um ambiente de intensa violência política, de quase guerra civil entre os diversos segmentos da população livre. A stasis e a violência era algo tão marcante na política grega que virou um dos temas “clássicos” da filosofia política do período – a busca de um regime que assegurasse a “boa ordem” na cidade-estado. De fato, um dos temas mais intrigantes do estudo da Grécia antiga, sobretudo de Atenas, é a relação entre a violência, decorrente da escravidão e da tradição guerreira, e o desenvolvimento de uma cultura sofisticada, da cidadania e da democracia.

Atenas foi, de fato, muito mais o “centro das boas tradições ocidentais” do que Esparta. A sociedade ateniense também foi relativamente menos militarista do que a espartana. Contudo, Atenas convivia com um grau de violência nas suas relações sociais, na sua política interna e na sua política externa que provavelmente não seria muito estranha a muitos dos países menos desenvolvidos da atualidade, mas certamente chocaria a opinião pública das nações mais prósperas e estáveis do Ocidente pós-1945. Além disso, falar que Esparta foi “um centro de tirania e opressão” em contraste com Atenas é deturpar a história. Ambas exploraram a mão-de-obra compulsória, só que em Esparta os trabalhadores oprimidos – os hilotas – lembravam mais os servos e, ao contrário dos escravos em Atenas, possuíam terras, famílias e não eram vendidos como propriedade privada dos espartanos. A mulher espartana possuía mais liberdade e influência do que a mulher ateniense. E a tirania foi um fenômeno político de Atenas e não de Esparta. Tudo isso pode ser encontrado em qualquer livro especializado na história da Grécia antiga: não é um tema esotérico, não é segredo de historiadores. Basta um pouco mais de atenção e seriedade para obter essas informações e tirar da cabeça uma visão deturpada e ingênua do passado.

Para os interessados nessa questão da guerra, violência e escravidão na Grécia antiga sugiro as seguintes leituras: Guerra e Economia na Grécia Antiga de Yvon Garlan (Campinas, Papirus Editora, 1991), Por Que o Ocidente Venceu – Massacre e Cultura da Grécia Antiga ao Vietnã de Victor Davis Hanson (Rio de Janeiro, Ediouro, 1992), A Guerra do Peloponeso – Novas Perspectivas Sobre o Mais Trágico Confronto da Grécia Antiga de Donald Kagan (Rio de Janeiro, Record, 2006) e A Batalha de Salamina – O Combate Naval que Salvou a Grécia e a Civilização Ocidental de Barry Strauss (Rio de Janeiro, Record, 2007).

3 comments:

ivan said...
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ivan said...

E para configurar mais argumentos sobre o filme "300" deixo a opniao de Arnaldo Jabor http://cbn.globoradio.globo.com/cbn/arquivos/arnaldojabor/2007/04/0/arnaldojabor2007040_1.asp é o seu comentário no site da CBN no dia 13 de abril de 2007. isso é apenas mais uma contribuição para ajudar a formar uma opnião sobre o filme.é uma ótima opniao, concerteza é de grande valia ouvir.

Obs: se não comsiguir entrar por esse link, basta entra no site da CBN e na coluna dos colunistas entrar em Arnaldo Jabor e depois noticias anteerioes e ouvir um comentátio sustentando na violência do filme e para aguçar sua curiosidade o titulo do comentário é : " Filme "300" o espetáculo que faz mal.
Ivan Morais, 2B

Vinícius Bivar said...

E aí Cassio?
Primeiramente, muito bom seu comentario sobre o filme "300", não me recordava muitas das coisas que vc falou sobre as Termópilas e sua argumentação foi bastante interessante. Não gostei muito do filme em questão, não faz muito meu estilo, mas compartilho da sua visão sobre o contexto histórico e do enredo do filme. Observação final: É interessante saber a opinião de nossos professores sobre esse tipo de tema, continue assim que terei prazer em visitar seu blog!

Vinícius 3ºB