Friday, June 22, 2007

3 Série - Nazismo e Comunismo

Interessante o texto "A destruição da política pelo nazismo e comunismo" que Carlos I. S. Azambuja colocou no Mídia Sem Máscara (22 de junho), extraído do livro A Infelicidade do Século de Alain Besançon (Editora Bertrand Brasil, 2000). Leiam:

A destruição da política pelo nazismo e comunismo

Antes de tomar o Poder e, para tomá-lo, os partidos comunistas e os nazistas utilizam todos os meios da política. Eles se instalam no jogo político, apesar de eles mesmos, segundo seus próprios critérios e sua disciplina interna, se colocarem fora do jogo. Por exemplo, quando o Partido Bolchevique reivindicou a terra para os camponeses e a paz imediata, não era para se contentar com o êxito dessas duas reivindicações. Tratava-se de colocar os camponeses e os soldados do seu lado a fim de lançar o processo revolucionário. Feita a revolução, a terra foi expropriada e a guerra foi ativamente preparada sem que o partido tivesse visto nisso qualquer contradição.
Uma vez no Poder, a política do partido fica mais do que nunca voltada para a destruição do político. As formas orgânicas da vida social, a família, as classes, os grupos de interesse, os corpos constituídos, são suprimidos. A partir daí, as pessoas, privadas de todo direito de associação, de agregação espontânea, de representação, reduzidas à condição de átomos, são colocadas em um novo enquadramento, o qual se modela sobre aquele que deveria subsistir se o socialismo existisse como sociedade. Ele assume, então, a denominação de sovietes, de uniões, de comunas.
O Partido Nazista imitou sumariamente a destruição comunista do político. Ele também tomou o Poder escondendo seus objetivos reais, enganando seus aliados provisórios para, em seguida, liquidá-los. Ele também criou quadros novos e integrou neles a juventude e as ‘massas’. Destruir imediatamente os velhos quadros não era seu objetivo. Contentou-se em neutralizá-los e submetê-los. Assim, sobreviveram no nazismo os empresários, um mercado, juízes e antigos funcionários. A seguir veio a guerra, que acentuou e acelerou o controle nazista. Não se sabe o que teria acontecido se ela tivesse sido ganha.
O Führerprinzip foi uma peça essencial da trama social. Ela se organizava em torno de uma hierarquia de chefes leais, devotados ao Reich, ligados por um juramento, e isso até o fundo da escala a partir do chefe supremo, cuja exaltação era coerente com o espírito do sistema. O Partido Comunista também era hierarquizado. A originalidade do partido de Lenin residiu no fato de que, desde a sua fundação, o centro designava à ‘base’ aqueles que deveriam ser eleitos, de tal modo que a eleição democrática se tornava simplesmente um teste do poder absoluto do ‘centro’. É que a consciência gnóstica, o saber científico fundador do partido, se encontrava teoricamente no organismo dirigente e se difundia a partir desse ponto para a ‘base’ que, remetendo o poder para o ‘centro’, manifestava seu progresso na assimilação da doutrina e da ‘linha’. Dessa forma, viu-se aumentar o culto ao chefe Lenin, o que chegou ao seu apogeu com Stalin. Trotsky, Zinoviev, Bukharin, Stalin buscavam o mesmo objetivo: o socialismo, mas seria necessário que um deles fosse o chefe. Sucederam-se, então, em circuito fechado as traições, prisões e assassinatos. O culto subsistiu mas, no tempo de Brejnev já demonstrava as suas fraquezas.
Os dois regimes – o nazista e o comunista – se referem a um passado mítico sobre o qual se modela um futuro imaginário (...) A idéia de Marx, segundo as palavras de Raymond Aron, era ir de Rousseau a Rousseau, passando por Saint-Simon, isto é, pelo progresso técnico e industrial. Já o hitlerismo era voluntarista: apenas a obra demiúrgica da vontade poderia restaurar a boa selva, em equilíbrio biológico. O leninismo contava com o automovimento da História para dar à luz a Arcádia moderna. O automovimento produz o partido, instrumento desse parto. O voluntarismo também é exaltado mas, ao mesmo tempo, ele é exaltado e negado, uma vez que ele – o partido – encarna apenas a consciência da necessidade.
Entre esse passado fabuloso e esse futuro ideal, o tempo presente não tem valor próprio (...) O passado próximo é o inimigo, o presente não conta, tudo fica submetido ao futuro, aos fins últimos, à utopia.

Os fins ilimitados do nazismo – A política de apaziguamento conduzida por Chamberlain, e em certa medida a política de divisão seguida por Stalin em 1940, repousavam sobre a hipótese de que Hitler poderia estar satisfeito com o que já havia obtido, pois já havia rasgado o Tratado de Versalhes e ‘adquirido’ bastantes ‘terras a Leste’ (...) Tendo reorganizado a Alemanha, eliminado os inaptos, os judeus, os ‘inferiores’, ele sentiu necessidade de ir mais longe (...) Fez um pacto com a União Soviética e, em uma leviandade incompreensível, declarou guerra aos EUA.
Nessa guerra, o nazismo revelou a si mesmo a sua vocação para exterminar fatia por fatia toda a Humanidade. Na medida em que o mundo resistia, a polaridade ariano-judia se tornava cada vez mais evidente. O judeu aparecia aos olhos de Hitler como o indício de resistência à realização do grande plano, pois tinha corrompido o mundo inteiro, conspurcado tudo, ‘enjudeusado’ tudo. Por isso, era a totalidade da humanidade que deveria ser purificada. Exterminada, portanto.
As ordens de aniquilamento dadas por Hitler, em 18 e 19 de março de 1945, não visavam uma luta final heróica (...) Para uma luta desse tipo, pouco adiantava colocar centenas de milhares de alemães no caminho da morte, nem fazer destruir tudo o que poderia servir à mais humilde das sobrevivências. Esse último genocídio de Hitler, agora voltado contra a própria Alemanha, tinha como único objetivo punir os alemães por sua recusa em agir como voluntários na direção de uma luta final heróica, no desempenho do papel que Hitler lhes tinha atribuído. Aos olhos de Hitler, isso constituía um crime passível de pena de morte. Um povo que não assume o papel que lhe era destinado deve morrer (1).
Hitler se recusou a construir ‘o nazismo em um só país’ e, para isso, os nazistas praticaram a ‘tática do salame’, dado que cada ‘raça’, antes poupada, via em seguida chegar a sua vez. Todavia, rapidamente tudo isso desembocou em um massacre geral. Eles não poderiam, como teria feito Stalin, prometer a independência à Ucrânia, dispostos a acertar suas contas com ela após a vitória. Foi necessário que eles tratassem de exterminá-la imediatamente, o que levou os ucranianos a ficarem contra eles, nazistas.
Hitler acreditava ser o veículo genial da Volksgeit e que suas ordens, no início prudentes, depois insanas, vinham de algo situado acima dele, e essa embriaguez era em parte comunicada ao seu povo. Por isso a irracionalidade na condução da guerra. Algumas decisões desejadas por seus generais teriam podido equilibrá-la e, pelo menos, levá-la a um empate, sob a condição, nunca dada, de que ela se propusesse fins limitados, falta que acabou, por culpa de Hitler e de seu wagnerismo doentio, levando-o à derrota.

Os fins ilimitados do comunismo – O projeto comunista é declaradamente total. Ele busca em extensão a revolução mundial, compreendendo por isso uma mutação radical da sociedade, da cultura e do próprio ser humano, autorizando a colocação em prática de meios racionais para obter esses fins alheios à razão. Lenin, durante a guerra, mostrou-se um sonhador quimérico, sobrepondo às realidades do mundo as entidades abstratas do capitalismo, do imperialismo, do oportunismo, do esquerdismo e de muitos outros ‘ismos’ que, em sua opinião, explicavam tudo. Ele os aplicava tanto à Suiça, como à Alemanha e à Rússia (...) A tomada do Poder por um partido comunista é preparada por uma luta puramente política no seio de uma sociedade normalmente política. É lá que ele treina suas táticas e as coloca em prática depois da vitória do partido. Aquela – por exemplo – chamada ‘tática do salame’, que consiste em fazer alianças com forças não-comunistas, de forma que force o aliado a participar da eliminação dos adversários: primeiro, a ‘extrema direita’, com a ajuda de toda a esquerda; depois, a fração moderada dessa esquerda e, assim, sucessivamente, até a última ‘fatia’, que deve submeter-se e ‘fundir-se’ sob pena de ser, por sua vez, eliminada. Esse profissionalismo, que inclui a astúcia, a paciência, a racionalidade, quanto ao objetivo buscado, faz a superioridade do leninismo. Mas trata-se apenas de destruição, pois a construção é impossível porque esse objetivo é insensato. A prática comunista não segue uma inspiração estética, mas procede, a cada instante de uma deliberação ‘científica’. A falsa ciência copiando da verdadeira seu caráter demonstrativo e seus procedimentos lógicos. Isso apenas torna mais louca a empresa, mais implacável a decisão e mais difícil a correção, pois a falsa ciência impede que se constatem os resultados da experiência. Pouco a pouco a destruição se amplia e se torna total. Na Rússia ela percorreu seis etapas: primeiro, a destruição do adversário político: a antiga administração. Isso foi feito em um piscar de olhos, logo em seguida ao putsch de outubro de 1917. Depois, a destruição das resistências sociais, reais ou potenciais: partidos, exército, sindicatos, cooperativas, corpos culturais, universidades, escolas, academias, Igreja, editoras, imprensa. No entanto, o partido logo se dá conta de que o socialismo nem sempre existiu como sociedade livre, auto-regulada e que, assim, a coação é, mais do que nunca, necessária para fazê-lo surgir. Mas a doutrina prevê que há apenas duas realidades – o socialismo e o capitalismo. É nesse momento, então, que a realidade se confunde com o capitalismo e que é preciso – terceira etapa – destruir toda a realidade: a aldeia, a família, os restos da educação burguesa, a língua russa. É preciso estender o controle sobre cada indivíduo tornado solitário e desarmado pela destruição de seu sistema de vida, levá-lo para um novo sistema em que será reeducado, recondicionado. Eliminar, enfim, os inimigos escondidos.
O fracasso da construção do socialismo no exterior deveu-se ao ambiente externo hostil. Pela sua simples existência, ele é uma ameaça, quaisquer que sejam as cores desse espectro hostil: democracia burguesa, social-democracia, fascismo. É preciso então – quarta etapa – criar em cada país organizações de tipo bolchevique com um organismo central para coordená-los e adaptá-los a esse modelo central, o Komintern. Quando, valendo-se das circunstâncias, o comunismo pôde se estender, as novas zonas agregadas ao ‘campo socialista’ conheceram etapas análogas de destruição. Porém, em toda a extensão do campo, o partido (pela voz de Stalin) assinala que ‘o capitalismo está mais forte que nunca’, se infiltra e se estende no próprio partido, que perde a sua virtude. Cabe então ao líder do partidário, e apenas a ele, destruir o partido (quinta etapa), para recriar um outro com seus restos. Stalin fez isso uma vez, não sem imitar Hitler e a sua ‘noite dos longos punhais’. Ele se preparava para fazê-lo uma segunda vez quando a morte o surpreendeu. Mao-Tsetung fez duas vezes: no momento do ‘Grande Salto para Frente’ e, depois, mais nitidamente ainda, na ‘Revolução Cultural’.

Usura e Destruição – Na lógica pura dos dois sistemas levada ao limite está contido o extermínio de toda a população da Terra. Mas essa lógica não se aplica e não pode se aplicar até o fim. O princípio do comunismo é o de subordinar tudo à tomada e conservação do Poder, pois é ao Poder que cabe a responsabilidade de realizar o projeto. Todavia, as destruições causam um tal desgaste que o poder do partido corre o risco, não de enfrentar uma revolta geral porque sabe preveni-la, mas de ver desaparecer a matéria humana sobre a qual ele se exerce. Foi o que aconteceu no final do ‘comunismo de guerra’: a Rússia se afundava, se liquefazia quando Lenin decretou a trégua da NEP (...) Enquanto a revolução não vence em escala mundial, o mundo exterior, mesmo reduzido a uma ilhota minúscula, é uma ameaça mortal. Por sua simples existência, ele corre o risco de fazer explodir a bolha de sabão da ficção socialista. E pouco importa que ele seja verdadeiramente hostil, como ele só foi uma vez com Hitler, ou que ele queira apenas a tranqüilidade e o status quo, como desejou o Ocidente depois da derrota do nazismo. Para manter o mundo real à distância, para eventualmente destruí-lo, é preciso uma força real à disposição do partido e esta só pode ser tirada da realidade que ele controla. Ele tem necessidade de um mínimo de economia real para nutrir a população de um mínimo de tecnologia e de indústria para equipar o Exército. Subsistem então produtores, técnicos, cientistas. O partido não pode fazer passar para o outro lado do espelho tudo o que ele é, pois seria vítima do nada que ele mesmo produziu. Enfim, a penúltima etapa, a destruição do próprio partido, colide com os reflexos vitais de sobrevivência. Depois dos grandes expurgos de Stalin e de Mao, o partido optou por algumas medidas ‘conservadoras’: não se matam mais comunistas, eles apenas caem em desgraça. Na Rússia, tudo isso levou à decadência do sistema. O partido envelheceu, porque a conservação do Poder terminou por se identificar com a conservação dos postos e dos cargos.
As táticas colocadas em prática em tempos dramáticos só servem para isso. Brejnev apodreceu lentamente na direção máxima e o partido se corrompeu, pois embora se dedicando mais aos objetivos do comunismo, quis, ao mesmo tempo, usufruir o poder e desfrutar das riquezas. Sai da irrealidade e entra na realidade devastada por sua ação, onde só encontra, em abundância, mercadorias vulgares, que nem a arte consegue embelezar, como a vodca, as datchas e as grandes limusines. Quanto ao povo, este se atola na porção da realidade que lhe foi sempre concedida, se vira como pode, se desinteressa de um regime que não mais lhe oferece a consolação da queda dos poderosos e a oportunidade de substituí-los. A degradação geral chega finalmente a um limite. Quando um piparote aleatório faz desabar o castelo de cartas, que poderia ter desabado muito antes, descobre-se uma paisagem pós-comunista mafiosa e semi-indolente, esgotada em sua energia.
Na China, os sobreviventes dos expurgos maoístas tomaram um caminho diferente. As necessidades do poder puro se misturaram aos cuidados de desenvolver o poder da China enquanto tal, e o comunismo morto é infiltrado pelo nacionalismo vivo. Contemporâneos da decadência do sovietismo, eles lamentaram ter seguido um modelo errado de desenvolvimento, enquanto que outras partes do mundo chinês, e em sua periferia, tinham seguido um outro modelo, melhor. Daí o caráter ambíguo da China atual, em pleno desenvolvimento, mas sem que o partido abandone seu projeto e sem que se saiba se esse partido é ainda comunista. As circunstâncias fizeram com que restasse apenas um regime comunista puro que, até hoje, preferiu a lógica do auto-aniquilamento: a Coréia do Norte.
Não sabemos como teria evoluído o nazismo. Ele não chegou ao seu clímax, pois foi derrubado nos primeiros passos da sua expansão. Ele se voltou para a realidade externa antes de ter terminado com a sociedade alemã. Enquanto a URSS preferiu a subversão organizada, o desencorajamento programado do ‘inimigo externo’, e o Exército Vermelho chegando somente para selar a vitória política, o nazismo recorreu imediatamente à guerra. A guerra acelerou de modo formidável o programa nazista, mas suscitando uma resistência mundial rapidamente vitoriosa.
As características do nazismo permitem eventualmente imaginar que Hitler teria podido chegar a uma paz de compromisso, que lhe teria deixado uma área vasta e estável. Nesse caso, morto o Führer, o regime teria se comportado de forma análoga à do regime leninista.
Na usura e no fracasso dos regimes totalitários, o fator externo é inegavelmente importante. Ele foi decisivo no caso da Alemanha nazista, esmagada por vários exércitos. Em contrapartida, o mundo capitalista nunca constituiu perigo para os regimes comunistas. O nazismo aumentou a legitimidade do comunismo aos olhos do Ocidente. Durante a época da chamada ‘Guerra Fria’, a política do roll back foi imediatamente afastada em favor daquela do containment. Essa opção não impediu vastas expansões territoriais comunistas na Ásia, na África e até na América. Finalmente, o único ponto do mundo em que o comunismo foi derrubado da maneira como o foi o nazismo, por uma invasão maciça devidamente organizada, em meio, é verdade, a um concerto de protestos de algumas potências não comunistas, foi a minúscula ilha de Granada.

O texto acima foi extraído das páginas 65 a 80 do livro de Alain Besançon, A Infelicidade do Século, editora Betrand Brasil, 2000

Nota:

(1) Sebastien Haffner, Un Certain Adolf Hitler, Paris, Grasset, 1979

Saturday, April 28, 2007

Ainda o filme "300"

Opa! Dei uma bobeada e só fiquei sabendo ontem (27 abril), por um aluno, de uma postagem neste blog que criticava os meus comentários do filme “300”. O post é de José Wagner Alcântara, advogado, e foi enviado no dia 16 de abril. O seu texto não é ofensivo e apenas mostra uma discordância de opinião, mas merece uma resposta em razão de seus equívocos. Abaixo em itálico partes do texto do José Wagner, seguidos dos meus comentários:

Certas cenas ficariam melhor em um vídeo game do que em um filme.

Pode ser. Mas esse tipo de imagem ou de cena não é monopólio estético do videogame. Não há nenhum problema em seu uso pelo cinema, cuja “linguagem” está sempre aberta à inovação e adaptação.

Não tem contexto histórico. Quer alçar-se à categoria de épico, mas não passa de uma história em quadrinhos. É um engodo tanto quanto o tal de Código da Vince, que alguns ingênuos ainda hoje teimam em achar que é uma pesquisa científica séria.

Uai? Como não tem contexto histórico? Segundo Heródoto, Diodoro e a tradição historiográfica clássica, a Grécia foi invadida pelo império persa com um grande exército comandado pessoalmente pelo imperador Xerxes; os espartanos e outros gregos enfrentaram, em desvantagem numérica, os persas nas Termópilas; o rei Leônidas de Esparta comandou os gregos na batalha das Termópilas, acompanhado por um grupo de 300 espartanos; durante dois dias os gregos conseguiram deter os invasores, inclusive a elite dos “Imortais” persas; um grego chamado Efialtes revelou aos persas um caminho alternativo para cercar os gregos; Leônidas resolveu permanecer no local e lutar bravamente contra os invasores para atrasá-los na invasão o máximo possível; Leônidas e praticamente todos espartanos morreram no terceiro dia lutando contra os persas; tempos depois, o exército persa foi derrotado pelos gregos, sob o comando dos espartanos, na Batalha de Platéia. Portanto, EM SUAS LINHAS GERAIS, O FILME É SIM FIEL AO QUE ACONTECEU. É verdade que ele omitiu parte da história e inventou outras coisas, mas SUBSTANCIALMENTE ELE TEM CONTEXTO HISTÓRICO. Como não? Se alguém duvida desse contexto, leia a obra de Heródoto (o episódio das Termópilas está no capítulo ou “livro” VII). Por outro lado, como já havia comentado neste blog, o filme nunca teve a intenção de ser uma reconstituição TOTALMENTE fiel ao que aconteceu. Ele é propositalmente uma transposição de uma história em quadrinhos para a tela – quadrinhos que, por sua vez, são uma adaptação livre dos acontecimentos reais. Nesse sentido, ele não é um engodo.

Ademais o senhor faz uma defesa muito veemente da violência, mas esparta é vista por muitos historiadores como um centro de tirania e opressão e atenas sim como o verdadeiro centro das boas tradições ocidentais.

Eu não faço “uma defesa muito veemente da violência”. Apenas afirmo, como qualquer historiador conhecedor da Grécia antiga, que a sociedade e a política gregas eram violentas. Em primeiro lugar, porque os gregos utilizaram-se da escravidão e de outras formas de trabalho compulsório ou, para utilizar um termo mais familiar à área do José Wagner, da coerção jurídico-política – as leis e o Estado permitindo o trabalho forçado, dando ao senhor poder absoluto sobre o corpo do seu escravo (castigos físicos, exploração, humilhação). É verdade que nas antigas sociedades escravistas, como nas modernas, existiram leis que tentavam conter os abusos dos senhores. Mas elas não questionaram o uso da violência sobre os escravos, apenas alguns excessos dos senhores. Ainda assim, é duvidoso que essas “regulamentações” tenham sido rigorosamente seguidas.

Contudo, a violência do mundo grego não era apenas resultado de uma cultura escravista que, na nossa tradição iluminista, seria considerada desumana. A violência também era decorrente de uma cultura guerreira, reforçada pela divisão da Grécia em cidades-estados rivais que disputavam terras, hegemonia e prestígio regional. A guerra, a possibilidade da guerra e a preparação para a guerra era algo natural para os gregos, muito mais do que para nós. A mais antiga obra literária da Grécia antiga (e, portanto, da civilização ocidental) trata da violência e da guerra – a Ilíada de Homero, ambientada na Guerra de Tróia, tendo como protagonistas os guerreiros Aquiles e Heitor. As três maiores obras de História escritas na Antiguidade são de autores gregos e tem como foco a guerra: a História de Heródoto (Guerras Greco-Persas), a História da Guerra do Peloponeso de Tucídides e a História de Políbio (Guerras Púnicas). Os gregos, sobretudo sua elite culta, tinham uma obsessão com a guerra. Os jovens eram educados escutando histórias militares, admirando guerreiros e se preparando para guerra. O apogeu da cultura clássica grega foi em Atenas na época de Péricles, que foi a época do imperialismo ateniense sobre outras cidades-estados. O imperialismo da culta e democrática Atenas desencadeou o mais violento conflito da história da Grécia – a Guerra do Peloponeso. Como os demais gregos, os atenienses cometeram atrocidades sobre seus inimigos, com um ódio e fúria que desmentem totalmente a visão romântica e idealista de que Atenas não tinha tradição guerreira ou não era violenta. Antes desse conflito, o espírito guerreiro ateniense já havia se destacado, e respeitosamente reconhecido pelos espartanos, durante as Guerras Greco-Persas, sobretudo na Batalha de Maratona (um massacre dos persas pelos atenienses) e na Batalha de Salamina.

Em razão dessa tradição guerreira generalizada, o principal dos deveres da cidadania grega era o de prestar serviço militar – atividade fundamental para garantir a segurança e os interesses coletivos da comunidade de cidadãos. Isso não foi de forma alguma uma característica exclusiva de Esparta – foi uma característica de todas as cidades-estados, inclusive de Atenas. Nesse aspecto, a principal diferença entre Esparta e Atenas foi que na primeira o exército de cidadãos era permanente e profissional, e na segunda ele era convocado em época de guerra. Enquanto os espartanos eram soldados de tempo integral, o exército ateniense era uma milícia bem-preparada de camponeses, artesãos, comerciantes e aristocratas. Mas a preparação para guerra e a cultura guerreira era comum a ambas, embora obviamente muito mais acentuadas em Esparta. Exatamente porque era mais forte em Esparta, muita gente pensa equivocadamente que essa tradição guerreira inexistia em Atenas e que, portanto, os atenienses desconheceram a violência política, voltando-se para as artes, para a filosofia e para a construção da democracia. Na verdade, em Atenas, como nas outras cidades-estados gregas, a violência generalizada também era uma decorrência de questões de política interna, de lutas entre facções que disputavam o poder nas cidades-estados e da construção da cidadania. Os gregos inventaram uma palavra para esse conflito político interno marcado pela violência – stasis. A democracia ateniense nasceu em um ambiente de intensa violência política, de quase guerra civil entre os diversos segmentos da população livre. A stasis e a violência era algo tão marcante na política grega que virou um dos temas “clássicos” da filosofia política do período – a busca de um regime que assegurasse a “boa ordem” na cidade-estado. De fato, um dos temas mais intrigantes do estudo da Grécia antiga, sobretudo de Atenas, é a relação entre a violência, decorrente da escravidão e da tradição guerreira, e o desenvolvimento de uma cultura sofisticada, da cidadania e da democracia.

Atenas foi, de fato, muito mais o “centro das boas tradições ocidentais” do que Esparta. A sociedade ateniense também foi relativamente menos militarista do que a espartana. Contudo, Atenas convivia com um grau de violência nas suas relações sociais, na sua política interna e na sua política externa que provavelmente não seria muito estranha a muitos dos países menos desenvolvidos da atualidade, mas certamente chocaria a opinião pública das nações mais prósperas e estáveis do Ocidente pós-1945. Além disso, falar que Esparta foi “um centro de tirania e opressão” em contraste com Atenas é deturpar a história. Ambas exploraram a mão-de-obra compulsória, só que em Esparta os trabalhadores oprimidos – os hilotas – lembravam mais os servos e, ao contrário dos escravos em Atenas, possuíam terras, famílias e não eram vendidos como propriedade privada dos espartanos. A mulher espartana possuía mais liberdade e influência do que a mulher ateniense. E a tirania foi um fenômeno político de Atenas e não de Esparta. Tudo isso pode ser encontrado em qualquer livro especializado na história da Grécia antiga: não é um tema esotérico, não é segredo de historiadores. Basta um pouco mais de atenção e seriedade para obter essas informações e tirar da cabeça uma visão deturpada e ingênua do passado.

Para os interessados nessa questão da guerra, violência e escravidão na Grécia antiga sugiro as seguintes leituras: Guerra e Economia na Grécia Antiga de Yvon Garlan (Campinas, Papirus Editora, 1991), Por Que o Ocidente Venceu – Massacre e Cultura da Grécia Antiga ao Vietnã de Victor Davis Hanson (Rio de Janeiro, Ediouro, 1992), A Guerra do Peloponeso – Novas Perspectivas Sobre o Mais Trágico Confronto da Grécia Antiga de Donald Kagan (Rio de Janeiro, Record, 2006) e A Batalha de Salamina – O Combate Naval que Salvou a Grécia e a Civilização Ocidental de Barry Strauss (Rio de Janeiro, Record, 2007).

Monday, April 16, 2007

3 Série: América Latina: a crise do liberalismo (1914-1945)

CONTINUAÇÃO/Unidade 1 – A América Latina nos séculos XX-XXI

1.2 América Latina: a crise do liberalismo (1914-1945)

a) O contexto internacional

Era das duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945)

Fim da supremacia européia e da hegemonia britânica no mundo

Ascensão dos EUA como principal potência econômica mundial

Formação da União Soviética a partir da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia
– Revolução de Outubro de 1917: Revolução Bolchevique ou Comunista, de inspiração marxista, liderada por Lênin.
– Nascimento do socialismo (economia estatizada com ditadura do partido comunista em nome do proletariado)
– Forneceu o modelo de intervencionismo estatal e de planificação econômica visando à modernização e industrialização
– Difundiu o ideal do socialismo de linha marxista-leninista, sobretudo com a criação do Comintern ou Terceira Internacional (1919-1943): organização internacional de partidos comunistas dirigida pelo PCUS (Partido Comunista da União Soviética), visando expandir a revolução socialista pelo mundo.

Criação da Liga das Nações: organização internacional reunindo a maioria dos países com o objetivo de garantir a paz mundial por meio da segurança coletiva, possibilitando a cooperação nos campos político, econômico e cultural.

Crise geral do capitalismo:
iniciada pelos problemas gerados pela Primeira Guerra Mundial (superados parcialmente em 1922-1928) e agravada com a Grande Depressão Mundial de 1930-1939 a partir do “Crack da Bolsa de Valores de Nova York” (1929): falências, desemprego em massa, retração do comércio e queda dos investimentos internacionais.

Crise do liberalismo: ascensão de regimes estatizantes (dirigismo econômico) inspirados em ideologias antiliberais coletivistas como o marxismo, o trabalhismo, o corporativismo ou o nacionalismo radical.

Marxismo – defesa da abolição do capitalismo e da instalação do socialismo (economia estatizada em nome dos trabalhadores) fundamentada na crença na luta de classes, na tomada do poder pelo proletariado organizado em um partido operário (comunista, socialista), na instalação da ditadura do proletariado (governo do partido operário) para estatizar a economia e na cooperação entre partidos operários de vários países para propagar a revolução socialista mundial (internacionalismo revolucionário).

Trabalhismo – defesa de uma legislação social no capitalismo com amplos direitos para os trabalhadores, pressupondo uma forte intervenção estatal nas relações entre empregados e empregadores, o aumento das atribuições do Estado, dos gastos públicos e da carga tributária.

Corporativismo – defesa da organização da sociedade capitalista em agrupamentos profissionais ou corporações (reunião de sindicatos e associações de empregados, profissionais liberais ou patrões) controladas por um Estado autoritário em nome da coesão nacional.

Nacionalismo radical – em termos econômicos, preconiza a intervenção estatal no capitalismo para incentivar a modernização ou industrialização (subsídios, protecionismo alfandegário, investimentos públicos na infra-estrutura, estatização de alguns setores estratégicos), inspirada no ideal da autarquia (auto-suficiência), visando eliminar ou reduzir a dependência estrangeira. Em geral, essa idéia resultou na instalação de ditaduras supostamente representantes dos interesses nacionais. Nos casos mais extremos, implicou numa intensa militarização e no imperialismo sob a justificativa de fortalecer e engrandecer a nação.

De uma maneira geral, surgiram dois tipos de regimes estatizantes:

Ditatoriais: como o socialismo ou “comunismo” na Rússia/União Soviética, o fascismo na Itália e o nazismo ou nacional-socialismo na Alemanha.
– Na URSS o capitalismo e o liberalismo foram extintos pelo socialismo marxista.
– Na Itália e na Alemanha o liberalismo foi sufocado, mas o capitalismo foi preservado sob o fascismo/nazismo, um sistema político ditatorial que combinou o nacionalismo radical, o antimarxismo, o corporativismo e o trabalhismo.
– Os regimes antiliberais da URSS, Alemanha nazista e Itália fascista costumam ser classificados como totalitários (ditaduras de partido único em nome de uma coletividade com pretensões de criar uma nova sociedade ou um novo homem e expandir sua ideologia).

Democráticos: o Welfare State ou Estado do Bem-estar Social capitalista que começou a ser instalado na Europa Ocidental com a social-democracia e nos EUA com o New Deal do presidente Franklin Roosevelt (1933-1945), combinando o liberalismo político com o trabalhismo.

b) O contexto latino-americano

Crise da economia agro-exportadora:
– Gerada pela retração do comércio mundial durantes as guerras mundiais e, principalmente, pela Grande Depressão, embora na década de 1920 tenha havido uma breve fase de prosperidade.
– Os investimentos estrangeiros também diminuíram
– Dificuldades no pagamento da dívida externa

Crise dos regimes oligárquicos liberais
– Aumento da pressão dos grupos urbanos por reformas políticas e econômicas
– Declínio do liberalismo e avanço das idéias intervencionistas e coletivistas, sobretudo de linha autoritária nacionalista.
– O marxismo avançou entre os intelectuais e no movimento operário (influência do Comintern), substituindo o anarquismo.

Início do populismo. Movimento e regime político com as seguintes características:
– mobilização das massas trabalhadoras por um líder carismático;
– nacionalismo econômico;
– reformas trabalhistas;
– manipulação ou controle dos sindicatos;
– na maior parte dos casos, ausência de um partido político forte, refletindo-se em uma ação política mais personalista (na figura do líder) do que partidária, e num relativo desprezo pelas instituições (legislativo, judiciário), com uma tendência ao autoritarismo, buscando a conciliação entre as classes.
O populismo latino-americano é um fenômeno político altamente debatido pelos historiadores e outros cientistas sociais, objeto de uma grande polêmica. Para alguns ele seria uma corrente não-marxista e reformista da esquerda latino-americana, outros o vêem como algo próximo do fascismo (a fronteira entre o socialismo e o fascismo nunca foi muito clara) e outros o consideram como uma adaptação de interesses oligárquicos a uma sociedade em rápida transição para a modernidade. O que não resta dúvida é que a mobilização popular feita pelo populismo foi vista como uma ameaça ao poder dos grupos políticos tradicionais, ao passo que o seu nacionalismo econômico implicou num desafio aos interesses do capital estrangeiro, sobretudo do norte-americano. Os maiores representantes do populismo latino-americano foram, no Brasil, Getúlio Vargas (entre 1930 e 1954) e João Goulart (herdeiro do populismo getulista em 1954-1964); no México, Lázaro Cárdenas (1934-1940) e, na Argentina, Juan Perón (entre 1943 e 1974).

Impulso à industrialização
Fatores favoráveis:
- Dificuldades comerciais geradas pelas guerras mundiais e pela Grande Depressão (redução das importações implicando na política de “substituição de importações”)
- Ascensão do populismo
- Crescente influência do nacionalismo econômico
Características: industrialização com forte apoio governamental sem excluir investimentos estrangeiros, sobretudo depois de 1945, na forma da instalação de multinacionais; ideal de uma produção voltada para o mercado interno (busca da auto-suficiência) com baixa competitividade internacional.
Embora no final do período (1945) a América Latina continuasse ainda com uma economia baseada na exportação de matérias-primas, o impulso à industrialização havia sido acelerado no Brasil, México e Argentina.

c) Os EUA e a América Latina

Afirmação da hegemonia americana na região

EUA substituiu a Grã-Bretanha como principal parceiro comercial e investidor na América Latina, consolidando os objetivos estratégicos e políticos da Doutrina Monroe.

Gradual abandono da prática de intervenção militar americana no Caribe e América Central:
– Revisão do Corolário Roosevelt e da Diplomacia do Dólar pelos presidentes Calvin Coolidge (1923-1929) e Herbert Hoover (1929-1933): melhorar a imagem dos EUA na América Latina, cortar gastos com intervencionismo e ampliar os negócios americanos na região.
– Inicialmente substituída pelo apoio às ditaduras no Caribe e América Central que garantissem a estabilidade política e os interesses econômicos americanos. Exemplos: ditaduras de Rafael Trujillo na República Dominicana (1930-1961), Fulgêncio Batista em Cuba (1934-1958) e Anastásio Somoza na Nicarágua (1936-1956).

Política da Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt (1933-1945): foi a consolidação da nova política americana para a América Latina
– Baseada no ideal de não-intervenção militar na região e de tolerar divergências com os governos vizinhos, paralelamente ao fortalecimento dos laços diplomáticos e comerciais entre EUA e América Latina em uma estrutura regional de pan-americanismo.
– A influência americana foi ampliada por meio da assistência econômica e do investimento de capital privado (exemplo: criação do Export-Import Bank em 1934 para financiar as compras de produtos americanos; tratados comerciais).

Problema para a hegemonia americana no Hemisfério Ocidental na década de 1930: as investidas diplomáticas e econômicas da Alemanha nazista.
– A estratégia americana: fortalecer o pan-americanismo utilizando o discurso de cooperação, democracia, integração econômica e não-envolvimento nos problemas europeus.
– 1936. Conferência Pan-Americana de Buenos Aires: compromisso de consulta mútua entre EUA e países latino-americanos em caso de ameaça à paz no continente.
– 1939. Conferência Pan-Americana do Panamá: necessário erradicar da América as doutrinas estrangeiras não-democráticas.
– 1942, janeiro. Conferência do Rio de Janeiro (Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores dos países americanos): solidariedade hemisférica com os EUA, que haviam entrado na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941. A maioria dos países da América Latina rompeu relações diplomáticas com o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

d) A Revolução Mexicana (1910-1920)

A Revolução Mexicana foi um violento movimento político e social, o maior levante das massas trabalhadoras da história da América Latina pós-independência. Apesar de envolver setores das elites mexicanas e diversos grupos urbanos, ela teve nos camponeses a sua principal base social. Seu conteúdo ideológico foi democrático e nacionalista, com a presença de idéias socialistas e anarquistas, ainda que não tenham prevalecido. De fato, a Revolução Mexicana ficou nos limites de uma “revolução burguesa” – radical e popular, mas que resultou, ainda assim, na construção de um Estado favorável ao capitalismo.

d.1 As origens da revolução

■ O “porfiriato” (1876-1911). Depois de meio século de instabilidade política, guerra civil e intervenções militares estrangeiras que se seguiram á independência, o México viveu um período de mais de 30 anos de paz e relativa prosperidade sob o governo do general Porfírio Díaz (1876-1880 e 1884-1911). Díaz instalou uma ditadura e manteve-se no poder por meio da fraude eleitoral e da violência, reprimindo a oposição.oposiçmindo a Auxiliado por assessores chamados de “científicos”, Díaz adotou um programa de modernização: construção de ferrovias, linhas telegráficas, criação de indústrias e estímulo aos investimentos estrangeiros (destacando-se o americano), sobretudo no setor petrolífero. No meio rural, buscou desenvolver a agricultura capitalista favorecendo a ocupação das antigas terras coletivas das comunidades camponesas indígenas pelos grandes proprietários. O resultado dessa política econômica foi o aumentou a concentração de renda no México, beneficiando os latifundiários, banqueiros e industriais.

■ A insatisfação com o porfiriato e as eleições de 1910. Os efeitos da modernização capitalista, combinados com uma estrutura política autoritária e excludente geraram um grande descontentamento entre vários grupos sociais: os camponeses ressentiam-se da perda das terras coletivas, o crescente proletariado industrial estava insatisfeito com a ausência de direitos trabalhistas, a classe média desejava participação política e setores da própria elite econômica discordavam da concentração de poder nas mãos de Díaz por um período tão longo. Foi nesse contexto que, em 1908, Díaz deu a entender que aceitaria a democratização do país a partir das eleições presidenciais de 1910. Francisco Madero, um rico empresário defensor de reformas sociais, emergiu, então, como principal líder da oposição ao porfiriato. A campanha eleitoral de Madero ganhou popularidade, assustando os porfiristas (as elites econômicas conservadoras). Em junho de 1910, Madero foi preso acusado de incitação à rebelião e Díaz foi reeleito presidente fraudando as eleições.

■ A opção revolucionária. Libertado em julho, Madero fugiu para os EUA e, em outubro, lançou o Plano de San Luís de Potosí, exigindo democracia e a restituição das terras dos camponeses – um plano que se transformou na plataforma da Revolução Mexicana. A proposta agrária de Madero, principalmente, foi fundamental para mobilizar os camponeses e desencadear a revolução popular. Com efeito, Madero e seus aliados concluíram que a única maneira de levar adiante seu plano era a derrubada de Díaz por meio da luta armada. Os revolucionários programaram a insurreição para novembro de 1910.

d.2 Características e etapas da revolução

A Revolução Mexicana não foi um movimento uniforme e seus partidários não possuíram os mesmos ideais, a não ser, inicialmente, derrubar Díaz. Ela caracterizou-se por uma série de lutas políticas numa longa guerra civil que combinou levantes camponeses, insurreições operárias e disputas pelo poder entre facções rivais das camadas dirigentes. A instabilidade política e as ameaças aos interesses americanos no México geradas pela revolução resultaram também na intervenção militar dos EUA. Diversas lideranças populares emergiram no processo revolucionário, destacando-se o camponês Emiliano Zapata (influenciado pelas idéias do anarquista Ricardo Flores Magón) e o bandido Pancho Villa. Ambos, sobretudo o primeiro, são até hoje ícones da esquerda latino-americana.

■ A derrubada de Díaz (1910-1911). A luta armada contra Díaz começou em novembro de 1910. As forças de Madero, partindo dos EUA, invadiram o México. No norte, Pancho Villa chefiou um levante de trabalhadores rurais e da mineração marginalizados, enquanto no sul, no estado de Morelos, camponeses indígenas liderados por Emiliano Zapata – organizados no ELS ou Exército Libertador do Sul – fizeram uma insurreição exigindo a devolução das terras comunais. As forças governamentais não conseguiram deter o avanço dos rebeldes e, em maio de 1911, Díaz renunciou e exilou-se na Europa.

■ O governo de Madero (1911-1913). Com a queda de Díaz, o governo foi assumido interinamente pelo conservador Francisco Leon de la Barra (maio-novembro 1911). Novas eleições foram realizadas e Madero foi eleito presidente. A vitória de Madero não encerrou a revolução. Díaz havia caído, mas o aparelho de Estado porfirista continuou intacto, com sua burocracia e militares reacionários. As elites econômicas partidárias do velho ditador aguardavam a oportunidade para recuperarem o poder. Por outro lado, os grupos revolucionários mais radicais, representados por Zapata e seus camponeses, exigiam uma rápida transferência maciça de terras dos latifundiários. Madero, cuja concepção de democracia era limitada e mais próxima de uma oligarquia liberal, não possuía solução para esses problemas. Seu governo fez algumas reformas no campo trabalhista, permitindo a organização de sindicatos e o direito a greve, mas ele não atendeu os zapatistas e tentou reprimir o seu movimento, sem sucesso. Madero ficou enfraquecido e, em fevereiro de 1913, foi derrubado por um golpe militar encabeçado pelo general porfirista Victoriano Huerta, apoiado pelo embaixador dos EUA. Alguns dias depois do golpe, Madero foi assassinado.

■ O governo de Victoriano Huerta (1913-1914). Huerta assumiu a presidência em eleições fraudulentas e instalou uma ditadura contra-revolucionária, que acabou perdendo o apoio dos EUA. A guerra civil se intensificou com o crescimento das forças revolucionárias, unidas na luta contra Huerta. Zapata e Villa juntaram-se a Venustiano Carranza, antigo ministro da Guerra de Madero, que organizou o Exército Constitucionalista, comandado pos Álvaro Obregón. A situação de Huerta ficou insustentável em 1914 quando os EUA tomaram a cidade de Vera Cruz, para proteger interesses americanos locais, privando o governo mexicano do seu principal porto importador de armas. Com as forças revolucionárias avançando rapidamente, Huerta renunciou em julho de 1914 e fugiu do país.

■ O governo de Carranza (1914-1920). Com a queda de Huerta, a coalizão revolucionária foi rompida e a guerra civil continuou. Villa e Zapata ocuparam a Cidade do México (novembro 1914 – janeiro 1915), forçando Carranza e Obregón – os Constitucionalistas – a se transferirem para Vera Cruz (Carranza oficialmente ainda não era o presidente). Contudo, os villistas e zapatistas não conseguiram elaborar um programa comum que atendesse os interesses dos camponeses e do proletariado urbano. Os Constitucionalistas, ao contrário, adotaram um plano de reformas sociais com decretos de distribuição de terras e melhorias nas condições dos trabalhadores industriais. A balança de forças favoreceu os Constitucionalistas e a Cidade do México foi tomada por eles (janeiro de 1915, embora o controle definitivo só tenha sido alcançado em abril). Em seguida, os grupos rebeldes radicais sofreram dois duros e decisivos golpes: no norte, em abril-julho de 1915, no mais sangrento confronto armado da revolução – a Batalha de Celaya – Obregón derrotou o exército de Villa, que nunca mais conseguiu se recuperar (em 1916, Villa ainda teve forças para atacar o sul dos EUA, desencadeando uma intervenção militar americana que inutilmente tentou captura-lo); em abril de 1919, Zapata foi morto pelas forças governamentais, levando seu exército a se dissolver. Antes da morte de Zapata, porém, Carranza promulgou a Constituição de 1917, em vigor até hoje: o México virou uma república democrática, direitos trabalhistas foram garantidos, a atuação do capital estrangeiro foi restringida e a propriedade da terra limitada. Na época, foi considerada a constituição mais progressista (no sentido dado pela esquerda) do mundo, mas ela não foi socialista. Com um conteúdo claramente nacionalista e reformista, ela favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nacional mexicano, limitando, mas não obstruindo, os investimentos estrangeiros. Para alguns historiadores, a constituição marcou o término da revolução. Carranza, contudo, resistiu em aplicar os artigos reformistas da constituição e seu governo deu uma guinada para a direita em 1917-1920. Na definição da sua sucessão, ele perdeu o importante apoio de Obregón, que organizou uma rebelião militar. Carranza fugiu da Cidade do México em maio de 1920, com uma grande quantidade de ouro e prata do tesouro nacional, mas acabou assassinado durante a fuga.

■ O governo de Obregón (1920-1924). Carranza foi sucedido interinamente por Adolfo de la Huerta e, nas eleições de setembro de 1920, Obregón saiu vitorioso, como esperado. Seu governo foi marcado pela reconstrução de um país devastado por uma guerra civil que havia matado cerca de 1 milhão de pessoas. A reforma agrária começou a ser feita lentamente e os trabalhadores estimulados a se sindicalizar, fortalecendo a Confederação Regional Operária Mexicana (CROM), a principal organização sindical. Apesar da retórica do seu governo possuir um contudo nacionalista e anti-capitalista, Obregón cultivou boas relações com os EUA e favoreceu a expansão do capitalismo mexicano. Fundamental para o desenvolvimento do nacionalismo do regime revolucionário foi a valorização e idealização do passado indígena, sobretudo asteca, do México, que resultou no culto do indigenismo.

■ A consolidação da revolução (1924-1940). No final do seu governo, Obregón sufocou um levante armado de grupos contra-revolucionários (1923) e conseguiu garantir a vitória do seu candidato, Plutarco Elias Calles, nas eleições de 1924 (em 1928, Obregón venceu as eleições para a sucessão de Calles, mas foi em seguida assassinado por um seminarista contrário a sua política anti-clerical). Calles governou em 1924-1928 e continuou sendo o homem forte da política mexicana nos mandatos de Emilio Portes Gil (1928-1930), Pascual Ortiz Rubiu (1930-1932) e Abelardo Rodrigues (1932-1934). Sua principal obra na consolidação do regime revolucionário foi a fundação do Partido Nacional Revolucionário, em 1929 (mudou de nome para Partido da Revolução Mexicana, em 1938, e definitivamente para Partido Revolucionário Institucional ou PRI, em 1946) que monopolizou o poder no México até 1998 (no legislativo) e 2000 (na presidência). Em 1934-1940 o México foi governado por Lázaro Cárdenas, considerado o mais importante e popular presidente do país no século XX. Cárdenas fez a maior reforma agrária do regime, distribuindo 18 milhões de hectares de terras a 750 mil famílias – o dobro de todos os governos anteriores. Seu governo também apoiou as reivindicações salariais do operariado, entrando em confronto com as empresas estrangeiras. Em conseqüência, ele nacionalizou o sistema ferroviário (1937) e o petróleo (1938), levando a criação da poderosa estatal Pemex (Petróleos Mexicanos), que serviu de modelo para outras nações em desenvolvimento. Apesar dessa medida prejudicar o capital americano, que dominava o setor petrolífero, o presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, resistiu às pressões das companhias do seu país que queriam uma intervenção militar contra Cárdenas. Defensor de uma diplomacia de aproximação com as nações latino-americanas – a Política de Boa-Vizinhança – em uma época em que o mundo caminhava para a Segunda Guerra Mundial, Roosevelt preferiu aceitar as medidas nacionalistas de Cárdenas, cuja popularidade aumentou ainda mais.

Wednesday, April 11, 2007

2 Série - Revolução Haitiana: enciclopédia virtual

Para os interessados em mais detalhes da Revolução Haitiana (1791-1804), há uma ótima enciclopédia virtual sobre o assunto em http://thelouvertureproject.org/index.php?title=Main_Page. Está em inglês.

Monday, April 09, 2007

A direita brasileira por Olavo de Carvalho

Leiam o ótimo texto do Olavo de Carvalho sobre a direita política e o conservadorismo no Brasil em http://www.olavodecarvalho.org/semana/070409dc.html
Abaixo, a parte inicial desse texto:

A direita a serviço da esquerda

Dentre as muitas coisas verdadeiras ditas pelo sr. Fernando Henrique Cardoso entre uma mentira e outra, esta merece a maior atenção:

"Não existe direita no Brasil, no sentido clássico do conceito... O pensamento conservador filia-se a uma tradição ocidental que estabelece como pilares da ordem a família, a propriedade, os costumes. O nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver com clientelismo, patrimonialismo, uso indevido dos recursos do Estado. Ele não é composto de um ideário, e sim de aproveitadores. Por que a 'direita', no Brasil, apóia todos os governos, não importa qual? Na história recente, ela apoiou os militares, apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou a mim, apóia o Lula. Porque seus integrantes não são de direita. Essa gente toda só quer estar perto do Estado, tirar vantagens dele."

Só faltou ele acrescentar – e por isso acrescento eu – que esse é o mais grave problema do Brasil. Desde logo, só a economia capitalista pode gerar prosperidade, mas o sucesso dessa economia depende diretamente da conduta da classe capitalista. Ora, é precisamente a essa classe que o ex-presidente se refere. Se ela própria insiste em se tornar dependente do Estado, por interesses imediatistas e pela relutância covarde em se expor plenamente aos riscos da livre concorrência, ela condena o capitalismo brasileiro à atrofia perpétua. Não tem sentido um sujeito prosternar-se ante a autoridade governamental e depois reclamar que ela o oprime com sobrecarga de impostos e de exigências burocráticas. Se você quer independência, tem de agir com independência. No Brasil os ricos gritam "Enxuguem o Estado!", mas querem continuar nadando na piscina das verbas oficiais. Assim não dá.

Mas os efeitos da subserviência capitalista ao Estado vão muito além da esfera econômica. O exemplo da classe rica se propaga por toda a população e a corrompe, fazendo de cada cidadão um virtual pedinte de dinheiro público. O brasileiro não sonha em enriquecer com trabalho, poupança e investimento, mas em chegar o mais rápido possível à aposentadoria. E ele não pensa assim por ser preguiçoso, mas porque sua poupança é comida pelos impostos e a única forma de investimento que resta ao seu alcance são as contribuições previdenciárias. O Brasil não é uma potência capitalista porque preferiu ser antes um imenso Instituto de Previdência. Os efeitos psicológicos dessa situação são devastadores: se o objetivo da vida é a aposentadoria, o trabalho não é o caminho da prosperidade e da auto-realização, mas uma incomodidade temporária que deve ser removida o mais rápido possível. Então o desleixo e a incompetência tornam-se não apenas direitos, mas até deveres: como o trabalho não tem nenhuma outra finalidade senão ser abolido o quanto antes, o trabalhador esforçado é visto como um vaidoso pedante ou como um puxa-saco do patrão.

Olavo de Carvalho in Diário do Comércio, 09 de abril de 2007

Tuesday, April 03, 2007

2 Série - EUA e América Latina (1870-1914)

Os fundamentos ideológicos da política externa americana:

A herança do calvinismo: EUA como a “Terra Prometida” (a “Nova Jerusalém”) e os americanos como o “povo eleito”, com um regime político e econômico superior ao do Velho Mundo – um modelo para a humanidade (democracia, liberdade individual, capitalismo, prosperidade econômica). Gerou dois impulsos contraditórios da política externa:

Isolacionismo e neutralidade: baseados na idéia da excepcionalidade dos EUA (suas idéias e instituições políticas eram únicas e não poderiam florescer em outras partes do mundo).

Internacionalismo e ativismo: baseados na idéia da missão sagrada e civilizadora dos EUA (propagar seu sistema político e econômico pelo mundo – o “evangelho da democracia”).

As bases da política externa americana para a América Latina:

Reduzir e restringir a influência da Europa na região e estabelecer a hegemonia americana: ideal de liderança política no Hemisfério Ocidental (as Américas), alicerçada na superioridade econômica e militar e fundamentada na Doutrina Monroe.

Fase da expansão territorial dos EUA na América (1800-1870): compra da Louisiana (França), da Flórida (Espanha) e do Alasca (Rússia), anexação do Texas e do norte do México (oficialmente comprado), legitimadas pela ideologia do Destino Manifesto.

Fase do império comercial dos EUA na América (1870 em diante): criação de uma “esfera de interesses” no continente por meio de relações econômicas e políticas visando a hegemonia. Razões dos EUA desistirem de novas conquistas territoriais (exceção Porto Rico, Havaí e Samoa e parte do Panamá): (I) países latino-americanos densamente povoados e impróprios para a imigração anglo-saxônica (racismo, preconceito cultural); (II) ênfase nas vantagens comerciais em lugar das aquisições territoriais; (III) impérios coloniais custavam caro em termos administrativos e militares.

Obstáculos para a hegemonia dos EUA na América Latina em 1870-1914: (I) domínio colonial europeu no Caribe; (II) visão preconceituosa da América Latina (inferioridade racial, cultura retrógrada de base católica e de tradições ibéricas autoritárias e burocráticas, clima tropical desestimulando o trabalho e o esforço pessoal).

Estratégias dos EUA na América Latina em 1870-1914: (I) desafiar e afastar o poder europeu do Caribe; (II) aproximar-se dos países latino-americanos por meio da ideologia da solidariedade hemisférica e do pan-americanismo (cooperação, aliança e integração dos países americanos); (III) intervenções militares e protetorados no Caribe, América Central e México para assegurar os interesses americanos. Essas intervenções foram feitas até a década de 1930 e implicavam no controle e regularização das finanças públicas caóticas e no estabelecimento de eleições presidenciais, favorecendo as oligarquias aliadas dos EUA.

A Guerra Hispano-Americana (1898)

No final do século XIX, a Espanha era uma potência decadente que possuía como principais colônias Cuba e Porto Rico, no Caribe, as Filipinas no Extremo Oriente e Guam no Pacífico. Todos esses territórios eram alvos das ambições dos grupos imperialistas americanos que, entre outros argumentos, baseavam-se na idéia do Destino Manifesto – o direito e a inevitabilidade histórica dos EUA à expansão pela América e Pacífico. Cuba, em especial, recebera muitos investimentos dos EUA nos setores açucareiro e de serviços. Por esse motivo, e devido à proximidade geográfica da Flórida, ela era vista por muitos americanos (e cubanos) como um país de destacada importância estratégica e econômica que deveria ficar sob o controle formal ou informal dos americanos. Quando os cubanos pegaram em armas contra a dominação espanhola na Guerra da Independência Cubana (1895-1898), as relações dos EUA com a Espanha deterioram rapidamente. Os interesses americanos estavam sendo prejudicados pela violência do conflito e muitos cobraram do presidente William McKinley (1897-1901) a aplicação da Doutrina Monroe contra a Espanha. A misteriosa explosão do encouraçado americano Maine, ancorado no porto de Havana (fevereiro 1898), matando 260 tripulantes, agravou a crise entre os dois países. A opinião pública americana, instigada pela imprensa e pelos grupos imperialistas, acusou os espanhóis de serem os responsáveis pelo fato. Em abril de 1898 os EUA reconheceram a independência de Cuba (e com a Emenda Teller afirmaram que não tinham interesse em anexar a ilha) e entraram em guerra com a Espanha. Rapidamente os EUA venceram a Guerra Hispano-Americana (abril-julho 1898) – ”uma pequena esplêndida guerra”, segundo o Secretário de Estado John Hay – e tomaram dos espanhóis as Filipinas, Guam e Porto Rico. Cuba ficou independente mas com sua soberania limitada de tal maneira que, na prática, ela virou um protetorado ou semi-colônia dos EUA. Pela Emenda Platt (1901) à constituição cubana, imposta pelos americanos, Cuba não podia assinar tratados ou fazer concessões a outros países sem a autorização dos EUA. Além disso, os americanos tinham o direito de intervir na ilha para manter a lei e a ordem. Os EUA também adquiriram uma base militar em Guantánamo. A Emenda foi revogada em 1934, mas a base militar continua até hoje sob controle americano.

O Big Stick

O imperialismo americano ganhou outro impulso no governo de Theodore Roosevelt (1901-1909), que adotou adaptou a Doutrina Monroe com o Corolário Roosevelt, apelidado de Política do Big Stick ou Grande Porrete – o direito de intervenção dos EUA na América Latina para garantir a estabilidade e proteger os interesses americanos. Ele tentou romper com a tradicional política externa de isolacionismo americano e ampliou a marinha de guerra do país, com o objetivo de dominar o Pacífico e o Caribe. A sua ação mais famosa foi a intervenção no Panamá (1903), país que era parte da Colômbia. No final do século XIX, os franceses foram autorizados a construir um canal no Panamá ligando o Pacífico ao Atlântico, encurtando a navegação entre os dois oceanos. O empreendimento francês fracassou (milhares de operários morreram de malária e febre amarela tentando construí-lo) e, em 1903, Roosevelt fez um acordo com a Colômbia para concluir a obra, em troca do direito dos americanos controlarem o canal por meio de um pagamento anual de arrendamento. Contudo, o Senado colombiano rejeitou o tratado. Quando os panamenhos revoltaram-se contra a Colômbia desejando a independência, Roosevelt imediatamente apoiou o movimento, enviando navios e fuzileiros navais que impediram os colombianos de reprimirem a revolução separatista. O Panamá ficou independente e assinou com os EUA o tratado para a construção do canal, feita em 1907-1914, garantindo o seu controle pelos americanos, e das terras adjacentes (a Zona do Canal), em troca de um arrendamento perpétuo. No entanto, o crescimento da hostilidade popular panamenha, de base nacionalista e anti-americana, na segunda metade do século XX, levou os EUA a reverem os termos do tratado. Em 2000 o controle do canal passou para o Panamá.

Sunday, April 01, 2007

O filme "300"

“300” foi aprovado

Fui à estréia do filme “300” na sexta-feira (30 de março), no Cinemark do Píer 21, sessão de 14:30. Achei o lugar muito cheio. Alunos e alunas aos montes (parecia o exército de Xerxes). Alguns me cumprimentaram educadamente, outros não me viram e outros fingiram que não me viram. Tudo bem. Não sei se essa quantidade de alunos é normal no horário de almoço de sexta-feira ou se foi excepcional por causa da estréia do filme. De qualquer forma, embora tivesse muita gente na sessão, ela não estava lotada, ao contrário do que imaginei. Mas uma coisa me chamou a atenção: o silêncio da platéia durante todo o filme, com exceção de um momento, quando um grupo de jovens gritou “This is Sparta!”, acompanhando as falas do personagem central (o pior é que ficou engraçado). De resto, as pessoas pareciam estar em transe no cinema. Não sei se a maioria gostou, mas na saída ouvi um cabeludo revoltado dizendo para os amigos: “Pô véio! Ele estragou o filme!”.
Bem, eu gostei bastante dos “300”. Pretendo vê-lo de novo e vou comprar o DVD quando for lançado. Por que gostei? Primeiro, porque adoro filmes épicos e de guerra, principalmente se baseados em algum fato da Antiguidade. Obviamente, isso por si só não é garantia de um bom filme. Vai depender também de como o enredo foi construído, da direção, da fotografia, do figurino e da música. A fidelidade histórica não é fundamental se o objetivo do filme for o entretenimento, a diversão, a fantasia em cima do que aconteceu – uma boa estória inspirada na história. Nesse tipo de filme esses outros fatores, digamos “técnicos” e “estéticos”, acabam tendo um peso muito maior do que a fidelidade aos acontecimentos. E essa foi a segunda e principal razão de ter gostado do filme: ele é um espetáculo de imagens e sons, com boas atuações e uma estória que prende a nossa atenção. Ele não é um documentário ou um daqueles filmes com pretensões de reconstituir a história, como nas produções do Discovery Channel, da BBC ou do National Geographic. Mesmo assim, “300” é razoavelmente fiel à história e não distorceu de forma absurda os acontecimentos que o inspiraram.

Os “300” de Frank Miller

“300” é uma adaptação de uma história em quadrinhos ou, como virou moda dizer, de uma “graphic novel”, com o mesmo título, do escritor e desenhista americano Frank Miller, lançada em 1998. Miller possui uma legião de fãs e é cultuado como uma espécie de “mestre” da sua geração de HQ. Eu acho os seus desenhos umas porcarias, chatíssimos de ver. Comprei na época os 5 números de “300”, li e joguei fora só por causa das ilustrações. Não compro mais nada ilustrado por ele e nem vou comprar. Nesse ponto sou muito mais conservador em termos de arte gráfica e prefiro desenhistas antigos como Frank Frazetta (insuperável), Hal Foster, Burne Hogarth, Joe Kubert e, vá lá, Russ Manning. O ponto forte de Miller são suas estórias, que costumam render bons roteiros para o cinema de ação (além de “300”, foram os casos de “Sin City” e “Elektra”). Acompanhados por um diretor competente, música adequada e recursos de efeitos visuais e sonoros de primeira linha, esses roteiros dão uma outra dimensão à obra de Miller, que os quadrinhos não conseguiram até hoje atingir.

A história que inspirou os “300” de Frank Miller

A estória dos “300” de Frank Miller é uma adaptação livre de um dos episódios militares mais famosos da Antiguidade – a Batalha das Termópilas, em 480 aC, entre gregos e persas, relatado, entre outros, pelo historiador Heródoto (484-425 aC). Na época da batalha, a Grécia estava dividida em pequenos Estados independentes ou cidades-estados, como Atenas, Esparta e Tebas. A Pérsia - atual Irã - por sua vez, dominava um poderoso império no Oriente Médio. Os persas organizaram um gigantesco exército (talvez 250 mil homens) comandado pelo rei Xerxes I e invadiram a Grécia com a intenção de incorporá-la aos seus domínios. O rei Leônidas I de Esparta, chefiando um pequeno contingente de gregos - uns 6 mil, entre eles 300 espartanos, considerados os melhores guerreiros da Grécia - dirigiu-se às Termópilas (“portões de fogo”), uma passagem estreita entre as montanhas e o mar na rota da invasão persa. Sua intenção era atrasar o máximo possível os invasores enquanto os gregos organizavam suas forças de defesa. Por três dias, possivelmente no mês de agosto de 480 aC, os espartanos e os outros gregos conseguiram deter os persas que sofreram perdas terríveis tentando inutilmente romper as defesas de Leônidas. Até as tropas de elite do exército persa, conhecidas como os “Imortais”, foram repelidas para desespero de Xerxes. Contudo, um grego chamado Efialtes revelou aos persas a existência de uma trilha secreta pelas montanhas que permitiria contornar e cercar as forças gregas. Leônidas sabia da existência desse caminho alternativo e tinha previamente enviado para lá 1.000 soldados da Fócida com a missão de guardá-lo. Quando o exército persa se aproximou do local, os fócios recuaram para outra linha de defesa. Ao invés de atacá-los, os persas continuaram avançando na direção das forças de Leônidas. Percebendo o cerco iminente, grande parte dos gregos fugiu ou recebeu ordens de Leônidas para se retirar. Entretanto, Leônidas permaneceu nas Termópilas com o que restava dos 300 espartanos, de 700 soldados da Téspia (que, sob o comando de Demófilo, haviam se recusado a abandonar seus aliados) e de 400 de Tebas (forçados a ficar por ordem de Leônidas). Não sabemos o total de soldados gregos que restaram para o confronto final, mas possivelmente eram menos de mil. Na luta encarniçada que se seguiu, os dois lados combateram com fúria e coragem. Dois irmãos de Xerxes e outros membros da família real persa morreram no enfrentamento. Leônidas também foi morto e seu corpo foi disputado desesperadamente pelos espartanos e persas. No final, os espartanos formaram um bloco compacto de soldados e foram massacrados pelas flechas e dardos persas. Os téspios também foram dizimados, mas os sobreviventes tebanos acabaram se rendendo. Xerxes, que não participou diretamente dos combates e nem foi ferido, ordenou que a cabeça de Leônidas fosse cortada e seu corpo crucificado.
A invasão persa continuou depois dessa difícil vitória na Batalha das Termópilas. Atenas chegou a ser tomada e incendiada, mas seus habitantes tinham fugido antes da chegada dos persas. No entanto, em setembro de 480 aC a frota persa de 1200 navios foi destruída por uma esquadra grega com 380 navios, na Batalha de Salamina, onde se destacaram os atenienses sob o comando de Temístocles. E, em julho (?) de 479 AC, uma força de 80 mil gregos (5 mil espartanos), chefiada pelo rei espartano Pausânias, destroçou o exército persa de 100 mil soldados na Batalha de Platéia. Com as derrotas de Salamina e de Platéia, a invasão persa fracassou e as cidades-estados da Grécia continuaram livres. Quanto a Xerxes, em 465 aC, ele foi assassinado na Pérsia por um dos seus ministros. Em 440 aC, no reinado de Artaxerxes I, sucessor de Xerxes, o corpo de Leônidas foi devolvido aos espartanos – 40 anos depois de sua morte na Batalha das Termópilas.
Segundo as antigas fontes históricas, pelo menos dois espartanos sobreviveram à Batalha das Termópilas: Pantites e Aristodemus. Pantites tinha sido enviado por Leônidas à região da Tessália para recrutar mais soldados, antes da batalha começar. Ele fracassou nessa missão e quando retornou para as Termópilas, a batalha já tinha terminado e seus companheiros estavam mortos. De volta a Esparta, foi desprezado pelos espartanos por não ter participado do ato de heroísmo em Termópilas e acabou se suicidando. Aristodemus e outro espartano, Euritos, tinham ficado gravemente feridos nos olhos durante a batalha e Leônidas ordenou que ambos retornassem para Esparta. Contudo Euritos acabou voltando para as Termópilas e morreu nos combates. Aristodemus retornou para sua cidade mas como Pantites, foi menosprezado e humilhado pelos espartanos. Para tentar se redimir, lutou feito um alucinado em Platéia.

O filme “300”

“300” tem 117 minutos e foi dirigido por Zack Snyder, com roteiro dele e de Kurt Johnstad. A maior parte do enredo de Frank Miller foi preservada. O rei Leônidas é interpretado por Gerard Butler, Xerxes por Rodrigo Santoro, a esposa de Leônidas, a rainha Gorgo, é interpretada por Lena Headey (lindíssima) e Efialtes por Andrew Tiernan. Todos esses personagens existiram, segundo as fontes antigas. Mas o filme acrescentou personagens fictícios, alguns inspirados em figuras reais. Por exemplo, o espartano Dilios (David Wenham) foi baseado em Aristodemus. Outro espartano, Stelios (Michael Fassbender), foi baseado em Dieneces que, diante da ameaça dos persas lançarem sobre os gregos tantas flechas que elas tapariam o sol, teria dito que assim seria melhor porque lutariam na sombra. Daxos (Andrew Pleavin), o guerreiro árcade, parece ter sido inspirado em Demófilo, embora no filme ele tenha fugido das Termópilas para escapar do cerco persa. O capitão espartano Ártemis (Vincent Regan) e seu filho Astinos (Tom Wisdom) são fictícios, mas podem ter sido inspirados em dois irmãos que lutaram com distinção na batalha, Alfeu e Marons. O principal vilão fictício do filme é o conselheiro espartano Theron (Dominic West).
O filme, assim como a história em quadrinhos repito, não tem pretensões de rigor histórico. Portanto, falar que o filme possui “erros” não seria adequado, já que esses “erros” são conscientes e propositais. O mais correto seria falar em “adaptações” ou mesmo “invenções livres”. Diversas análises foram feitas apontando essas adaptações e invenções e não vou repeti-las aqui. Para os interessados, indico os seguintes comentários disponíveis na internet, todos em inglês:

http://en.wikipedia.org/wiki/300_(film) – detalhes sobre o filme, sua fidelidade histórica e as críticas favoráveis e desfavoráveis em um artigo equilibrado da Wikipedia.

http://en.wikipedia.org/wiki/Battle_of_Thermopylae - outro bom artigo da Wikipedia, tratando da Batalha das Termópilas.

http://www.chasingthefrog.com/reelfaces/300spartans.php - um ótimo “fato e ficção” do filme.

http://www.iranian.com/Daryaee/2007/March/300/index.html - uma visão negativa e pró-persa do filme.

http://www.thestar.com/article/190493 - outro artigo desfavorável ao filme, criticando sua pouca precisão histórica.

http://www.victorhanson.com/articles/hanson032807.html - uma defesa convincente do filme.

http://www.perseus.tufts.edu/ - textos antigos sobre a Batalha das Termópilas e os personagens reais retratados no filme.

Se vocês tiverem paciência, leiam esses artigos depois dos meus comentários ao final dessa postagem.
Por fim, como já falei em outra postagem, vejam a versão mais antiga da Batalha das Termópilas no filme “Os 300 de Esparta” (“The 300 Spartans”), disponível em DVD. Ele é uma produção de 1962, dirigida por Rudolph Maté. Richard Egan faz o papel de Leônidas, David Farrar representa Xerxes e Ana Synodiou é Gorgo. Embora sem os recursos técnicos do “300” mais recente, o filme de Maté é muito mais fiel aos acontecimentos. Parece que Frank Miller resolveu escrever sua estória inspirada nesse filme de 1962.

A violência e o preconceito cultural dos “300”

“300” é um filme violento (se não me engano ele é proibido para menores de 16 anos) que opõe de forma maniqueísta os gregos (símbolos da liberdade) aos persas (símbolos da opressão). Ele vem sendo muito criticado por isso, com alguns dizendo que é uma apologia à violência e ao fascismo (irracionalismo militarista ultra-nacionalista), além de ser uma propaganda ideológica contra o Oriente de uma maneira geral e à Pérsia, quer dizer, ao Irã, de forma particular. Segundo esses críticos, o filme induz o espectador a legitimar e a valorizar a violência e a considerar o Irã-Pérsia uma ameaça ao Ocidente.
Bem, o filme retrata uma batalha, onde um grupo de guerreiros foi dizimado por outro. Como não ser violento?
A batalha ficou famosa pelo heroísmo dos gregos, sobretudo pelo senso de dever e sacrifício coletivo pela pátria e por valores políticos considerados dignos de luta – coisas que, no mundo atual, cada vez mais individualista, consumista, cínico e amoral, são vistas por muitos como ultrapassadas, anacrônicas, absurdas ou simplesmente ridículas. No nosso mundo, exigem-se cada vez mais direitos, mas os deveres são desprezados, ironizados e orgulhosamente descumpridos. Assim como interpretar sob o ângulo dos “valores” dominantes de hoje, o que aconteceu nas Termópilas?
A sociedade espartana era altamente militarizada. Os espartanos formavam uma elite de cidadãos que eram soldados profissionais, submetidos a uma rigorosa disciplina e treinamento desde crianças, proibidos de exercerem outras atividades até os 60 anos. Esse tipo de profissionalismo militar não era comum nas cidades-estados gregas. De fato, os cidadãos das outras cidades, como Atenas, eram agricultores, artesãos e comerciantes que só pegavam em armas em tempos de guerra. O serviço militar era um dever cívico desses cidadãos, que tinham de se armar com seus próprios recursos. Assim, seus exércitos não eram permanentes e profissionais como os de Esparta eram na verdade, uma espécie de “milícia” de cidadãos-soldados. Por essa razão, os guerreiros espartanos se destacaram em relação aos demais guerreiros gregos. Ainda assim, mesmo sem o grau de especialização, treinamento e eficiência dos espartanos, os exércitos não-profissionais das outras cidades gregas constituíram uma terrível máquina de combate. Na verdade, o conjunto dos guerreiros gregos, incluindo obviamente os espartanos, foram os melhores do mundo antigo em 550-350 aC, como os persas descobriram. Como não destacar esse militarismo “fora de moda” num filme sobre guerreiros gregos, sobretudo espartanos?
O filme e o fato que o inspirou têm sim muito de sanguinolento, de apologia à força bruta, de instinto animalesco do enfrentamento físico e brutal entre rivais – aquilo que antigamente era chamado de “filme de macho”. Esse aspecto irracional, tão fundamental nas origens das guerras e da violência de uma maneira geral, é incompreensível para muitos, sobretudo, para os que acreditam que o homem é naturalmente bom e pacífico e que todo ato violento tem causas exclusivamente sociais ou econômicas isto é, em distorções estruturais da sociedade. Como, sob esse ângulo, compreender o prazer em lutar e matar retratado no filme?
A questão se torna mais complexa quando lembramos que a sociedade grega foi muito mais violenta do que a sociedade moderna capitalista e, ainda assim, inovadora e revolucionária no campo cultural. Os gregos utilizaram-se amplamente da escravidão, freqüentemente o “comércio” grego confundia-se com a pirataria e as guerras eram quase endêmicas entre suas cidades-estados. Contudo, essa violenta civilização foi a mesma que criou e nos legou a filosofia, os fundamentos da ciência moderna, da indagação racional e da ciência política. As bases da literatura, das artes plásticas e do teatro do Ocidente foram inventadas pelos antigos gregos, enquanto exploravam de forma brutal o trabalho de outros seres humanos e se matavam em constantes guerras. Como uma civilização guerreira pôde lançar as bases de uma cultura humanista?
Em geral, as cidades-estados gregas ou póleis possuíam regimes republicanos com governos eleitos pelos cidadãos isto é, pelos indivíduos com direitos e deveres políticos. Mesmo em Esparta, onde existia uma monarquia dual ou diarquia (dois monarcas simultaneamente) com poder reduzido, os principais magistrados eram os éforos, eleitos pelos cidadãos-soldados com mandato anual. Em todas as póleis com governos representativos existiam assembléias de cidadãos e órgãos consultivos que controlavam e limitavam o poder executivo. Dependendo da quantidade de cidadãos com plenos direitos, a cidade-estado assumia a forma de uma oligarquia (um “governo de poucos” ou da aristocracia, isto é, das famílias da nobreza, como em Esparta) ou de uma democracia (o “poder do povo” quer dizer, do conjunto de cidadãos, incluindo nobres e pessoas comuns, como em Atenas). Embora os cidadãos constituíssem sempre uma minoria da população adulta (as mulheres não possuíam direitos políticos e uma parte considerável dos trabalhadores era formada por escravos), ainda assim, a simples existência da noção e da prática da cidadania, bem como a concepção de Estado, de liberdade e de igualdade que implicavam, representaram um fato inédito nas civilizações antigas. Como deixar de retratar esses valores num filme ambientado na Grécia Antiga?
Em contraste com a Grécia, no Oriente Médio o Estado assumiu feições mais absolutistas ou despóticas consolidadas na monarquia do reino da Pérsia que, no século VI aC, dominou grande parte da Ásia Ocidental e o Egito, formando o poderoso Império Persa. O imperador persa tinha o título de xá ou, mais precisamente, xšāyaθiya xšāyaθiyānām – “rei dos reis”. O título indica as pretensões universalistas e imperialistas da monarquia persa, fato que se refletiu na política de expansão territorial e de domínio sobre vários povos. De fato, os habitantes do império não eram cidadãos, eram súditos. O Estado persa não era fundamentado em assembléias e conselhos de cidadãos ainda que o xá precisasse, para governar, do apoio da família real, dos membros da nobreza e, principalmente, da burocracia imperial. Caso a Grécia caísse sob o domínio dos persas, o potencial de desenvolvimento das tradições de cidadania, de governos representativos, de liberdade de discussão e da indagação filosófica seria sufocado, com efeitos desastrosos para a formação da civilização ocidental. Isso não é especulação e nem preconceito cultural, mas uma conclusão a partir das evidências que possuímos. No século VII aC, a vanguarda política e intelectual da civilização grega estava com as póleis estabelecidas em séculos anteriores na Ásia Menor (atual Turquia). Depois que o Império Persa conquistou essas cidades-estados no século VI aC, elas perderam essa liderança cultural e passaram a ter um papel mais marginal no desenvolvimento da civilização grega.
Na verdade, a visão de que a guerra entre gregos e persas representou um confronto entre a liberdade política e a servidão não foi criada por nós, mas pelos próprios gregos que sabiam muito bem o que tinha acontecido e o que estava acontecendo nas terras do leste. É claro que essa avaliação dos gregos precisa ser posta à crítica histórica. Em grande medida ela foi e chegou a conclusões parecidas com a dos gregos. Acontece que da década de 1970 para cá, essa interpretação passou a ser considerada ideológica por muitos historiadores e vem sendo cada vez mais combatida. Atualmente, é considerado “politicamente incorreto” falar em tradição despótica do Oriente em oposição à tradição de liberdade do Ocidente. Quem mais condena esse tipo de comparação, considerada preconceituosa, são os chamados multiculturalistas. Sob o argumento de que todas as criações culturais devem ser respeitadas, de que nenhuma cultura é melhor ou superior à outra e de que todas têm o mesmo valor histórico, muitos multiculturalistas ou relativistas culturais acabaram se tornando antiocidentais. Afirmam que destacar os valores gregos ou ocidentais é uma postura preconceituosa e ideológica, que precisa ser evitada e banida das análises históricas, sobretudo as comparativas. Assim, para encobrir as realizações políticas e culturais da Grécia, esses historiadores antiocidentais destacam o caráter limitado da cidadania antiga, a prática da escravidão e a submissão das mulheres, ou seja, enfatizam aquilo que consideraríamos os aspectos mais negativos da civilização grega. No final, essa postura antigrega, antiocidental e multiculturalista é que se tornou ideológica e preconceituosa. Como fazer uma “leitura” da tradição grega difundida no filme “300” sob esse prisma ideológico e antiocidental?
Na verdade, se o filme “300” não retratasse a violência, os valores gregos e a oposição entre seus costumes e os dos persas, ele seria muito mais impreciso historicamente – muito mais ficção do que história.
“Ahuu"!

Sunday, March 18, 2007

Os 300 de Esparta (1)

Leiam a crítica de Reinaldo José Lopes sobre o filme "300" no portal G1. Tentei copiá-la neste blog, mas não cosegui (acho que o G1 tem algum tipo de proteção para impedir cópias). De qualquer forma, o endereço é: http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL11853-5603,00.html.

Procurem também assistir ao filme "Os 300 de Esparta", de 1961, do diretor Rudolph Maté, com Richard Egan no papel do rei Leônidas. Ele foi lançado em DVD pela Classicline em 2005.

Thursday, February 08, 2007

América Latina XX-XXI (1)

A reportagem de capa da revista Veja de 28 de outubro de 1970 tratou do futuro da esquerda latino-americana. Compare o contexto analisado na época com o atual:

Esquerda na América 28 de outubro de 1970

O que dizia a reportagem de VEJA

Com a confirmação, pelo Congresso Nacional, do nome do marxista Salvador Allende para a Presidência do Chile, a América Latina passa a testar se outros tempos, tempos incertos de esquerda, estão de fato se iniciando. No mesmo momento, Peru e Bolívia se afundam progressivamente na linha "nacionalista de esquerda" – de desfecho ainda nebuloso. No Peru, militares liderados pelo general Juan Velasco Alvarado nacionalizaram a empresa petrolífera americana IPC, passaram a repensar o tratamento oferecido a empresas estrangeiras e comandaram a reforma agrária e o controle à imprensa. No campo externo, porém, Lima evita o reatamento com Cuba, ao mesmo tempo em que tenta se reaproximar dos Estados Unidos. Na Bolívia, o general Juan José Torres não foi muito além do reconhecimento do mérito do modelo peruano. Torres parece igualmente decidido a evitar qualquer passo mais radical. Mas é mesmo no Chile que a América Latina vê a sua maior transformação: um Chile socialista teoricamente teria condições de exercer na América Latina, a curto prazo, uma influência que Cuba não conseguiu ter em seus onze anos de fidelismo.

O que aconteceu depois

A maior parte dos países da América Latina mergulhou em ditaduras nos anos seguintes à reportagem de VEJA. Curiosamente, os regimes fortes não seriam de esquerda, mas, sim, uma reação ao risco comunista. O Chile talvez seja o maior exemplo disso. O regime socialista do país deixou o Palácio La Moneda, sede do governo, juntamente com o corpo de Salvador Allende, em 1973: mortalmente ferido por um golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet. Durante os 17 anos seguintes, Pinochet comandaria o país, sepultando o sonho socialista e introduzindo reformas profundas e modernizantes na economia. Com a saída do general, em 1990, governos civis democraticamente eleitos se revezaram no poder. Isso inclui administrações socialistas como a da atual presidente, Michelle Bachelet, que chegou a ser presa e torturada durante a era Pinochet.
Ao invés da "nacionalização esquerdizante" de que falava a reportagem de VEJA de 1970, os atuais socialistas chilenos têm se esforçado em manter a estabilidade econômica, ampliar ganhos de produtividade e multiplicar investimentos em áreas como educação e tecnologia. O resultado disso é que a economia chilena é a que mais cresce no bloco latino-americano, com taxas constantes ao redor dos 5% ao ano. Os benefícios são comprovados pelos indicadores sociais: os chilenos têm taxas de analfabetismo, homicídio e desemprego abaixo da média regional; já o PIB per capital está acima do dos vizinhos.
Já o Peru voltou ao regime democrático em 1980. A partir de 1990, o país passou por um período de reformas liberais, comandadas pelo presidente Alberto Fujimori – "El Chino", como era jocosamente chamado devido à origem oriental. Apesar do início promissor, Fujimori despertou o populismo típico do continente: fechou o Congresso, reformou a Constituição para ser reeleito e pretendia se perpetuar no poder. Só foi impedido porque denúncias graves de corrupção o afastaram do poder. Desde então, o Peru divide seu tempo e energia entre propostas de salvação nacional e novas denúncias de corrupção.
A Bolívia, terceiro personagem da capa de VEJA de 1970, parece ter feito uma viagem ao passado. Eleito em 2006, o presidente Evo Morales, determinou o monopólio estatal dos negócios do gás e do petróleo. Sem aviso prévio, mandou o Exército invadir refinarias de propriedade de empresas estrangeiras – uma das maiores prejudicadas pela ação foi a brasileira Petrobras, que investira bilhões de dólares no país vizinho. É a terceira vez que a Bolívia estatiza seus recursos fósseis e minerais. Nas duas anteriores, em 1937 e 1969, a intervenção não ajudou o país a amenizar a miséria de seu povo e, por isso, acabou sendo revertida. No plano doméstico, Morales trava duras batalhas com a oposição para reformar a Constituição nacional e ampliar mudanças rumo a um suposto “socialismo”. Seu grande mentor neste tema – e também na questão da nacionalização do gás e do petróleo – é o venezuelano Hugo Chávez.
Curiosamente, a Venezuela não foi tragada pela onda de regimes militares que assolou a América Latina nos anos de 1960 e 1970. Porém, em pleno século XXI, o país caminha em direção a uma ditadura personalista, concentrada nas mãos de um presidente eleito democraticamente. Hugo Chávez é o cacique dos novos populistas latino-americanos. Caudilho de tradição caribenha, ele usa o lucro farto do petróleo venezuelano para alimentar uma política doméstica assistencialista e financiar aliados nos países vizinhos – caso de Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, e Daniel Ortega, na Nicarágua. Além disso, ele viaja pelo mundo repetindo pregações contra o "inimigo dos oprimidos", os Estados Unidos, numa tentativa de ressuscitar a antiga tática da esquerda de eleger um adversário e atribuir a ele todos os males domésticos. A divisão na América Latina, porém, nada tem a ver com o velho confronto entre esquerda e direita. O que existe é uma linha entre governos responsáveis e populistas. México, Chile e Brasil estão no primeiro grupo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve os fundamentos de estabilidade econômica herdados do governo anterior e não tenta subverter as regras do jogo político para se tornar um ditador. A inflação é baixa, e os investimentos externos estão aumentando. Já do lado dos populistas, uma característica comum é revestir o discurso com retórica de esquerda: é o caso de Chávez, Morales e, em menor medida, ao argentino Néstor Kirchner.

Wednesday, February 07, 2007

Donald Kagan e as guerras


Donald Kagan é um historiador americano de origem lituana nascido em 1932. Professor de História da Grécia Antiga na Universidade de Yale, Kagan escreveu um notável estudo sobre a Guerra do Peloponeso em quatro volumes, publicado em 1969-1987. Embora uma versão resumida dessa obra tenha sido lançada no Brasil em 2006 (A Guerra do Peloponeso, Editora Record), seus trabalhos são poucos conhecidos ou discutidos aqui. O mesmo ocorre com os escritos do seu filho, Robert Kagan (nascido em 1958), um destacado analista político, que tem um pequeno mas excelente ensaio traduzido para o português (Do Paraíso e do Poder – Os Estados Unidos e a Europa na Nova Ordem Mundial, Editora Rocco, 2003). Donald Kagan também é autor de um livro formidável sobre as origens das guerras – On the Origins of War and the Preservation of Peace (Anchor Books, 1996). Nesse livro, Kagan analisa as origens da Guerra do Peloponeso, da Segunda Guerra Púnica, da Primeira Guerra Mundial, da Segunda Guerra Mundial e da Crise dos Mísseis de Cuba, que quase desencadeou a Terceira Guerra Mundial. Na Introdução desse estudo, ele faz algumas reflexões sobre o poder e sua projeção internacional sob a ótica da teoria realista. Um resumo dessa Introdução, com adaptações, segue abaixo:

1. O fim das guerras mundiais?

O colapso da URSS em 1991 encerrou a perigosa rivalidade bipolar de 50 anos. Para muitos analistas, esse acontecimento inaugurou uma nova era de segurança, prosperidade e paz, resultado da vitória do Ocidente sobre o Leste, da democracia sobre a ditadura comunista, do livre mercado sobre o dirigismo econômico. Uma paz duradoura agora seria possível porque: (I) a expansão do livre mercado e das comunicações, integrando economicamente os países no processo de globalização, tornaria improvável ou impossível uma grande guerra entre as potências; (II) a extensão da democracia pelo mundo tornou-o mais pacífico, haja vista que as democracias não lutaram entre si na modernidade; (III) a nova balança do poder deixou as potências satisfeitas com o seu lugar no mundo; (IV) a existência dos arsenais nucleares, com capacidade de retaliação, impedem guerras generalizadas entre grandes potências; (V) o triunfo do liberalismo sobre o socialismo encerrou os grandes conflitos ideológicos.
Mas esse otimismo existiu no passado em outras conjunturas, como no final do século XVIII, no século XIX e no início do século XX, quando também se dizia que o comércio e os regimes representativos seriam barreiras contra as guerras. Contudo, em 1792-1815, todas as grandes potências da Europa foram envolvidas nas guerras da Revolução Francesa e da Era Napoleônica, e em 1914-1918, todas as grandes potências industriais lutaram na Primeira Guerra Mundial.

2. O otimismo pacifista ocidental

Um aspecto cultural fundamental do Ocidente moderno é a crença de que os seres humanos podem modificar e controlar o ambiente físico ou natural e a natureza humana para melhorar as condições de vida. Essa crença tem sua origem na (I) Revolução Científica dos séculos XVI-XVII, que iniciou a crença de que a natureza poderia ser manipulada com esse propósito, e na (II) Revolução Intelectual do século XVIII (o Iluminismo), que desenvolveu a idéia de que a sociedade e o comportamento do indivíduo poderiam ser adaptados para criar o progresso, a paz e a prosperidade. Como a natureza, os povos e as instituições foram vistas como infinitamente maleáveis, exigindo apenas inteligência, boa vontade e determinação para serem aperfeiçoadas.

3. O grande equívoco

A idéia de que a “Era das guerras entre as potências” acabou foi ou é defendida por otimistas (argumento das vantagens do comércio e da democracia) e por pessimistas (argumento do temor da destruição mútua). No entanto, esse raciocínio ou conclusão está errado. Esperando e acreditando no progresso, ambos esqueceram que a guerra faz parte da experiência humana desde tempos pré-históricos. Em 1968, Will e Ariel Durant calcularam que houve apenas 268 anos livres de guerras nos 3421 anos anteriores. Os antigos gregos tinham consciência da constância da guerra. Ao contrário deles, no entanto, o mundo moderno falhou em compreender as causas da guerra. Nossa época procurou as causas e origens das guerras em forças impessoais: (I) na monarquia, aristocracia e a antiga índole guerreira que as envolvia; (II) na luta de classes; (III) no imperialismo; (IV) na corrida armamentista: (V) no sistema de alianças etc.

4. Poder

Os estudiosos modernos mais astutos concluíram que algo mais fundamental gera as guerras: a competição pelo poder. O ilustre historiador Michael Howard, no livro The Causes of War (1983),observou que “em 1914 a maioria dos alemães, e em 1939 quase todos os britânicos, sentiram-se justificados a irem à guerra não por causa de alguma questão específica que poderia ser resolvida pela negociação, mas para manter o seu poder antes que ficassem isolados, tão impotentes, que não lhes restaria nenhum poder e teriam que aceitar uma posição subordinada dentro de um sistema internacional dominado por seus adversários.”
Mas o que é o poder? Poder é a habilidade de impor a sua vontade sobre outro, em geral pela força. Isso não é necessariamente ruim porque o poder é em si neutro. Na verdade, poder é a capacidade de atingir fins desejados, bons ou maus. Ele também é a capacidade de resistir às exigências e pressões de outros. Nesse caso, o poder é fundamental para se obter e preservar a liberdade.

5. Realismo e neo-realismo

O poder no nosso mundo é essencial e a disputa por ele é inevitável. Esse ponto de vista é básico entre os cientistas políticos modernos realistas e neo-realistas que estudam as relações internacionais. Os realistas acreditam que todos os Estados e nações buscam o máximo de poder possível. Para eles, o conflito gerado pela busca ilimitada do poder só termina quando uma potência domina todas as outras ou quando o medo recíproco gera uma paz. Os neo-realistas afirmam que os Estados buscam não o poder em si ou a dominação, mas a segurança que, por sua vez, requer poder. Eles têm uma visão menos assustadora porque deixam a esperança de que sistemas podem ser construídos e pessoas educadas de maneira a controlar o poder, fornecendo segurança a todos sem uma luta interminável, embora nenhum sistema tenha alcançado isso ainda. Para os neo-realistas, os Estados buscam o poder para preservar as coisas boas que eles possuem na paz e na segurança.
A maioria dos estudiosos dessa questão assume que os Estados buscam o poder para alcançar objetivos práticos e tangíveis: riqueza, prosperidade e liberdade de interferência externa. Mas a extensão dos objetivos que levam um povo a ir à guerra é muito ampla e nem sempre tão prática. De acordo com Geoffrey Blainey (The Causes of War, 1973), as causas das guerras são variedades do poder: nacionalismo, expansão ideológica, proteção de povos irmãos em terras adjacentes, desejo de mais comércio e territórios, vingança de uma derrota ou insulto, fortalecimento nacional ou independência, desejo de impressionar ou cimentar alianças. Mas a lista não unicamente de variedades do poder, mas também inclui objetivos pelos quais se procura o poder.

6. Tucídides

Tucídides, o antigo historiador grego, forneceu uma explicação clara, mais profunda e compreensiva das razões dos Estados guerrearem: ele entendeu que era competição armada pelo poder. No seu famoso livro, História da Guerra do Peloponeso, no igualmente famoso trecho do Diálogo Meliano, os atenienses afirmam que a busca ilimitada do poder é natural, tanto nos céus como na terra. Segundo Tucídides, as pessoas vão à guerra pela “honra, medo e interesse”. Que o medo e interesse causam guerras não surpreende o leitor moderno, mas o papel da honra pode soar estranho. Se entendida como fama, glória, renome ou esplendor, parece coisa do passado, anacrônica. No entanto, entendida como respeito, estima, dever justo, consideração ou prestígio é um importante motivo das guerras no mundo moderno. Nesse sentido, ela é desejável em si mesma, mas também de importância prática na competição por poder. Quando o poder de um Estado aumenta, o respeito e deferência por ele crescem. Mas mesmo quando o seu poder material aparenta continuar o mesmo, na realidade ele declina se as atitudes acerca dele mudarem. Isso acontece mais frequentemente quando um Estado perde a vontade de usar o seu poder material.